Logo R7.com
Logo do PlayPlus
R7 Brasília

‘Dói na alma ver tantos olhares vazios’, diz repórter do R7 sobre tragédia no RS

Bruna Lima compartilha experiência vivida no Rio Grande do Sul em meio à catástrofe que destruiu o estado

Brasília|Bruna Lima, do R7, em Brasília

A repórter do R7 Bruna Lima
A repórter do R7 Bruna Lima Bruna Lima/R7 - 16.5.2024

Depois de eu anunciar que “por hoje é só”, dona Clarice me convidou para jantar com ela e o marido, o senhor Beto. A refeição, no entanto, ela não pôde preparar. Nem sabe se ainda tem um fogão para cozinhar. Ela torce para que a casa esteja de pé e chora ao lembrar do Bob, o cachorro que deixou para trás na correria enquanto a água engolia uma vida inteira.

Clarice é uma das 90 mil pessoas desabrigadas pelas enchentes que atingem o Rio Grande do Sul. Para mim, é a senhora que me confiou seu relato e, como tantos, fez parte de uma mudança profissional e pessoal que mexeu tudo aqui dentro.

leia mais

Apesar de lembrar de cada uma das pessoas com quem falei nos últimos dias na cobertura da tragédia sem precedentes no estado gaúcho, de cabeça não sei precisar quantos relatos de quem perdeu tudo eu escutei. Ali, em São Leopoldo, a cada dois que eu parava na rua, alguém não tinha mais casa para morar. E isso não é exagero. Dos mais de 217 mil moradores do município, 100 mil estão desalojados e 180 mil foram afetados de alguma forma.

Os pedidos desesperados por atenção e a revolta pelo cansaço e falta de perspectiva de voltar para casa se mesclavam — muitas vezes na fala de uma mesma pessoa — com a gratidão de estar vivo e de perceber a ajuda que chega dos quatro cantos do país.


A cada entrada ao vivo, a cada texto publicado, minha vontade era de gritar para o mundo nas entrelinhas: “Não parem de ajudar, eles vão precisar”. E eu fiz isso em toda oportunidade que pude. Mas sei que não é o suficiente. Não por ora, quando a água nem sequer baixou e os estragos continuam ocultos na calçada da rua em que somente de barco se pode passar.

Dói na alma ver tantos olhares vazios, outros marejados. Há uma mistura do desconsolo com um ar de esperança de que dias melhores virão. Mas quando virão? Enquanto a chuva não dá trégua, a resposta fica para outro momento. “Melhor pensar no aqui e no agora”, me disse a professora Andréia, que hoje mora na própria escola em que trabalha e que foi adaptada para receber mulheres e crianças desabrigadas.


Mesmo com a casa debaixo d’água e cuidando da mãe idosa que com ela dorme no abrigo, Andréia ocupa a mente também sendo voluntária. Aos poucos, vai tentando internalizar as perdas materiais que teve, mas sofre ao lembrar do quadro de formatura grudado na parede da sala, o símbolo do sonho de uma vida, da luta para se graduar. Sente culpa, ainda, dos trabalhos dos alunos que não teve tempo de pensar em salvar. Mas muda de assunto para não chorar. “Agora é hora de ser forte.”

E eu, que nem sequer sou vítima dessa tragédia, perdi as forças sem perceber. Naquela fila de doações que rodava o quarteirão, senti o silêncio e a concentração das pessoas para ouvir o que a repórter tinha para falar. Olhei para o lado e vi a dona Iara, que me contou metade da vida, mas não quis gravar. Com uma lágrima no olhar ela me diz: “Obrigada por me fazer ser ouvida”. Choramos juntas. Ela, sem aparecer, como me pediu. Eu, ao vivo, me culpando por não ter sido forte como Andréia e ter roubado um lugar de fala que não era meu.


Já a janta da dona Clarice, eu educadamente recusei. Com 1,5 mil pessoas para comer naquele abrigo montado em uma universidade, não poderia eu, no meu mais alto privilégio de ter uma casa, retirar de uma pessoa a chance de repetir um prato de comida. Mas será que não deveria ter aceitado? Ter compartilhado aquele momento e servir de ombro amigo para alguém que abracei uma dúzia de vezes naquele dia e que, provavelmente, queria me arrancar mais alguns gestos de carinho?

Até mesmo escrevendo esse texto me questiono se um relato pessoal cabe em um momento como esse. Eu não tenho resposta, mas, se você está lendo isso agora, é porque alguém acima de mim avaliou que sim.

Fato é que o equilíbrio entre o profissional e o pessoal em um cenário de completa devastação transita. Como o barco que movimenta as águas e desvia de carros afogados para atender aos poucos moradores que restam ilhados nos pisos superiores de casas e que se recusam a sair para proteger seus bens de serem saqueados. Ou como o humor do senhor César, que reclama dos desentendimentos com voluntários e outros abrigados — com quem, do dia para a noite, foi obrigado a conviver —, mas agradece cada refeição servida e a ajuda recebida para cuidar dos quatro netos enquanto a filha, e mãe das crianças, aguarda no hospital a chegada de mais um bebê. É a vida no meio do caos.

O jornalismo é a vida real. Da Clarice, da Andreia, da Iara, do César e até da Bruna. Não tem fórmula certa e, muitas vezes, se mistura. E, nessa conexão, eu sigo com a missão de, por meio do meu trabalho, contar relatos de quem, mesmo no presente, já vive a história. Para mim, “por hoje é só”, mas amanhã tem mais. A notícia, como a ajuda à população gaúcha, não pode parar por aqui.

Últimas


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com oAviso de Privacidade.