New York Times: leia a íntegra da reportagem que mostrou ida de Bolsonaro à Embaixada da Hungria
Ex-presidente não poderia ser preso em uma embaixada que o acolhe por estar fora do alcance das autoridades nacionais
Brasília|Jack Nicas, Christoph Koettl, Leonardo Coelho e Paulo Motoryn
No dia oito de fevereiro, a Polícia Federal confiscou o passaporte de Jair Bolsonaro e prendeu dois de seus antigos assessores, acusados de tramar um golpe para mantê-lo no poder, mesmo não conseguindo se reeleger em 2022.
Passados quatro dias, o ex-presidente estava à porta da embaixada da Hungria, esperando para poder entrar, como mostram as imagens da câmera de segurança do edifício obtidas pelo "The New York Times" – registros que também indicam que parece ter se hospedado ali durante os dois dias seguintes.
À porta, acompanhado de dois seguranças, ficou aguardando o embaixador e seus funcionários. Alvo de várias investigações criminais, o ex-presidente sabe que não pode ser detido em qualquer embaixada que o receba, já que legalmente é um espaço inacessível para as autoridades nacionais. Sua estada ali sugere que tinha intenção de se beneficiar da amizade com outro líder de extrema-direita, o primeiro-ministro Viktor Orban, para tentar escapar da justiça brasileira.
O "The Times" analisou o material gravado por quatro câmeras do prédio durante três dias, incluindo a chegada de Bolsonaro, na noite de 12 de fevereiro, e sua partida, na tarde do dia 14. Durante esse período, ele praticamente não foi visto. A verificação das imagens foi feita mediante a comparação com as imagens da embaixada, incluindo as de satélite, que mostram o carro em que chegou estacionado à entrada no dia 13. Um funcionário, que concordou em falar conosco sob anonimato por estar discutindo questões internas, confirmou o plano de mantê-lo ali.
Depois da publicação deste artigo, porém, Bolsonaro confirmou a estada. "Não vou negar que estive na embaixada. Tenho amizade com alguns chefes de Estado pelo mundo, e eles estão preocupados", declarou ao portal de notícias brasileiro Metrópoles, em 25 de março. Em nota, seu advogado, Paulo Cunha Bueno, declarou no mesmo dia que o ex-presidente ficou na embaixada para "manter contatos" com os diplomatas húngaros: "Quaisquer outras interpretações que extrapolem as informações aqui repassadas se constituem em evidente obra ficcional, sem relação com a realidade dos fatos, e são, na prática, mais um rol de fake News." A embaixada húngara não atendeu ao nosso pedido de esclarecimento.
Bolsonaro e Orban mantém há anos uma relação próxima, principalmente pelo fato de ambos serem líderes de extrema-direita em nações democráticas. O primeiro chegou até a chamar o segundo de "irmão" durante visita à Hungria em 2022. No mesmo ano, o ministro das Relações Exteriores húngaro perguntou a um membro do governo do brasileiro se seu país poderia fazer alguma coisa para ajudar a reelegê-lo, segundo o resumo de seus comentários feito pelo governo brasileiro. Em dezembro, a dupla se reencontrou em Buenos Aires para a posse de Javier Milei, novo presidente argentino, também de extrema-direita; na ocasião, Orban descreveu Bolsonaro como "herói".
Mas o fato é que este último enfrenta investigações criminais cada vez mais envolventes e inevitáveis: desde que deixou o cargo, teve a casa revistada e o celular e o passaporte confiscados; além disso, viu diversos aliados e antigos assessores serem presos.
Nos casos em que está envolvido, é acusado de uma série de falcatruas, incluindo participação na venda das joias que ganhou enquanto ainda estava na presidência e a falsificação do certificado vacinal da covid para poder viajar aos EUA. Na semana passada, foi indiciado pela Polícia Federal (PF) no caso da imunização, que está sob análise do Ministério Público Federal.
As acusações mais graves, entretanto, dizem respeito ao golpe que tramou com vários ministros e assessores para se manter no poder depois de ter sido derrotado nas eleições – dos quais alguns foram presos e outros tiveram a casa revistada pelos agentes da PF. Horas depois, Orban postou uma mensagem de encorajamento ao amigo, chamando-o de "verdadeiro patriota" e o encorajando a "continuar lutando".
Quatro dias depois, em 12 de fevereiro, Bolsonaro postou um vídeo convocando os correligionários para um comício que faria em São Paulo no mesmo mês. "Quero me defender de todas as acusações. Até lá, se Deus quiser", foram suas palavras. Mais tarde, no mesmo dia, foi à embaixada. Momentos antes de sua chegada, as câmeras de segurança mostram o embaixador Miklós Halmai andando de uma lado para o outro, digitando no celular. As instalações, pequenas, estavam praticamente vazias, com exceção de alguns diplomatas que moram ali. Os funcionários nativos estavam de folga, pois a visita coincidiu com a comemoração do Carnaval.
Às 21h34, um carro preto surgiu ao portão. Dele saiu um homem, que acabou batendo palmas para atrair a atenção de quem estava lá dentro. Três minutos depois, Halmai abriu o portão e mostrou a vaga onde deveriam estacionar. Bolsonaro e dois homens que pareciam ser seguranças saíram do veículo; o húngaro os convidou para entrar. Depois de uma conversa breve, os quatro tomaram o elevador.
Durante as duas horas seguintes, de acordo com as imagens e um funcionário, os empregados foram e voltaram diversas vezes à área do prédio onde ficam dois apartamentos de hóspedes com roupa de cama, água e outros itens, até que as atividades cessaram, às 23h40.
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No dia seguinte, às 7h26, Halmai saiu da área residencial e começou a digitar no celular. Meia hora depois, o embaixador e outro homem voltaram a entrar com uma cafeteira. Durante o resto do dia, os funcionários circularam pelo prédio, inclusive um casal com o filho. No finzinho da tarde, Bolsonaro apareceu andando pelo estacionamento com um dos seguranças; este e o colega saíram duas vezes, sendo que na hora do almoço um deles voltou com uma embalagem que parecia ser de pizza.
Às 20h38, o segundo segurança chegou de volta ao estacionamento com um homem no banco de trás. Com uma sacola na mão, ele entrou na área onde Bolsonaro estava hospedado e saiu 38 minutos depois. Enquanto o veículo manobrava, um sujeito parecido com o ex-presidente saiu para observar.
Segundo um funcionário da embaixada, em 14 de fevereiro os diplomatas ligaram para os empregados brasileiros, que deveriam voltar ao trabalho no dia seguinte, dizendo que poderiam tirar o resto da semana de folga, mas não explicaram o motivo. Nesse dia, Bolsonaro foi visto nas câmeras de segurança pela primeira vez às 16h14, quando, com os dois seguranças, saiu da área residencial com duas mochilas, seguindo direto para o carro. Halmai, que se encontrava um pouco atrás, observou o grupo saindo e acenou.
A possibilidade de Bolsonaro ser preso gerou rumores de que poderia tentar fugir da justiça. Dois de seus filhos entraram com pedido de cidadania italiana, forçando o ministro das Relações Exteriores daquele país a negar publicamente que o ex-mandatário, de ascendência italiana, tenha feito o mesmo.
No último dia de governo, Bolsonaro foi à Flórida, onde ficou durante três meses. Um de seus apoiadores mais famosos, o blogueiro Allan dos Santos, conseguiu driblar a justiça do Brasil, onde está sendo acusado de ameaçar os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), e pediu asilo político nos EUA.
Duas semanas depois de ter deixado a embaixada – não se sabe o motivo da partida –, ele promoveu a manifestação planejada em São Paulo, que contou, segundo observadores independentes, com a participação de 185 mil pessoas. Ali repetiu sua defesa, dizendo que era vítima de perseguição política.
Ele e seus advogados alegam que o STF cometeu abuso de poder, interferindo nas eleições de 2022, e agora quer prendê-lo e a seus aliados. Para tentar corroborar a teoria, citam as gravações de seu ex-braço direito, cuja confissão se tornou essencial para o processo, alegando que os investigadores já estabeleceram a culpa de Bolsonaro.
Desde então, o imbróglio legal em que está metido só fez crescer. Os documentos divulgados pelo STF mostram que os chefes do Exército e da Força Aérea declararam à polícia que, depois de perder as eleições de 2022, Bolsonaro lhes apresentou um plano para reverter os resultados – e que se recusaram a concordar com o esquema, ameaçando até prender o ex-presidente se tentasse levá-lo adiante.
Este mês, Bolsonaro disse não estar preocupado com a prisão. "Eu poderia muito bem estar em outro país, mas decidi voltar e ficar aqui, custe o que custar. Não tenho medo", afirmou em um evento político.
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