Rico em recursos naturais, Vale do Javari é palco de conflitos com pescadores e garimpeiros
Segunda maior terra indígena do país, Vale do Javari é pressionada por pesca ilegal, garimpo, tráfico e extração de madeira
Brasília|Hellen Leite, do R7, em Brasília
A Terra Indígena Vale do Javari, onde forças de segurança fazem buscas pelo indigenista da Fundação Nacional do Índio (Funai) Bruno Araújo Pereira e pelo jornalista britânico Dom Phillips, é palco de conflitos que envolvem garimpo, extração de madeira, pesca ilegal e narcotraficantes. O indigenista e o repórter do jornal The Guardian sumiram no último domingo (5) quando faziam o trajeto entre a comunidade ribeirinha São Rafael e a cidade de Atalaia do Norte, a 1.135 quilômetros de Manaus.
Com 8,5 milhões de hectares, a terra indígena fica localizada no extremo oeste do Amazonas, na fronteira com o Peru, e abriga ao menos 14 grupos isolados — a maior população indígena não contatada do mundo. A área é a segunda maior terra indígena do país — atrás apenas da Yanomami, com 9,4 milhões de hectares — e tem acesso restrito, feito apenas por avião ou barco, já que a região não tem eixos rodoviários nem ferroviários próximos.
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No entanto, o local em que o jornalista e o indigenista desapareceram costuma ser movimentado. A distância da comunidade ribeirinha São Rafael, onde a dupla foi vista pela última vez, até a cidade de Atalaia do Norte, onde fica o posto da Funai, pode ser percorrida em duas horas de viagem de barco.
São Rafael é, inclusive, a última vila antes do limite indígena demarcado pelo governo federal em 2001. É a delimitação do fim da sociedade não indígena e o início da sociedade indígena, marcada por conflitos que se arrastam há décadas na região. Com o aumento da pressão fundiária na região, São Rafael se tornou também o ponto de partida para a entrada de invasores no território indígena, principalmente pescadores e caçadores ilegais.
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Fontes em Atalaia do Norte relataram ao R7 que Bruno conhece bem a região e sabe que a comunidade abriga desafetos dos indígenas. "Não sabemos por que ele foi a São Rafael acompanhado de um jornalista estrangeiro sozinho, sem escolta. Ele estava com indígenas poucas horas antes, por que ele não levou os indígenas com ele? A gente não sabe se foi um lapso do Bruno, ele conhece tudo tão bem para cometer um vacilo", comentou uma fonte que preferiu não se identificar.
O servidor da Funai estava licenciado após ser exonerado da chefia da Coordenação de Índios Isolados e de Recente Contato, em 2019. Ele foi dispensado do cargo logo após uma operação que expulsou garimpeiros da Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Na ocasião, um helicóptero que servia ao garimpo foi apreendido.
Desde então, Bruno Pereira trabalhava assessorando a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava). Foi a organização que fez o alerta sobre o desaparecimento do indigenista e do jornalista inglês, na segunda-feira (6), quase 24 horas depois do desaparecimento da dupla.
Ataques
Nos últimos anos, a principal base da Funai no município, a que fica no rio Ituí-Itacoaí, foi alvo de diversos ataques a tiros. Em um ano, entre novembro de 2018 e dezembro de 2019, houve oito investidas contra o posto, que culminou na morte do indigenista Maxciel Pereira dos Santos, também colaborador da Funai. Dias antes, ele tinha recebido ameaças de morte de caçadores por sua atuação em defesa da terra indígena.
Se a leste da Terra Indígena a pressão é de pescadores, a oeste, na fronteira com o Peru, o Vale do Javari é pressionado por garimpeiros em busca de ouro e narcotraficantes. Nessa porção da terra, às margens do rio Jutaí, os grupos de indígenas isolados convivem com o avanço de garimpeiros.
Operações de buscas
Ainda no domingo, às 14h, a primeira equipe de buscas da coordenação indígena saiu de Atalaia e cobriu o mesmo trecho que os dois teriam percorrido, mas nenhum vestígio foi encontrado. Mais tarde, às 16h, outra equipe, com uma embarcação maior, saiu do município de Tabatinga, retornando ao mesmo local, mas novamente nenhum vestígio foi encontrado.
Na segunda-feira (6) pela manhã, a Marinha enviou uma equipe de busca e salvamento para Atalaia do Norte para auxiliar nas buscas à embarcação usada pelo jornalista e pelo servidor da Funai. Sete militares da Marinha, com auxílio de uma lancha, atuam nas atividades de busca. Nesta terça-feira (7), as buscas continuam com o auxílio de um helicóptero, duas embarcações e uma moto aquática
O governo do estado também disponibilizou um helicóptero, barcos e mergulhadores para reforçar as buscas, e a Polícia Federal atua nas investigações do caso. Ontem, a corporação ouviu duas testemuhas, que prestaram depoimento e foram liberadas. Elas foram as últimas pessoas a ter contato com o indigenista e o jornalista britânico, segundo informações da polícia.
O desaparecimento
Bruno e Dom saíram de Atalaia do Norte para visitar a equipe de vigilância indígena do lago do Jaburu na sexta-feira (3). Eles deveriam ter voltado ao município no último domingo pela manhã, o que não aconteceu.
Os dois viajavam em uma embarcação nova, com 70 litros de gasolina — o suficiente para o percurso — e sete tambores vazios de combustível. Por volta das 6h do domingo, eles chegaram à comunidade São Rafael, onde encontrariam uma liderança local. Sem conseguirem falar com o morador, decidiram voltar a Atalaia do Norte, viagem que deveria durar cerca de duas horas. Contudo, não chegaram à cidade.
Bruno é indigenista especializado em povos indígenas isolados e conhecedor da região, onde foi coordenador regional por cinco anos. Já Phillips mora em Salvador, na Bahia, e faz reportagens sobre o Brasil há 15 anos para o New York Times e o Washington Post, bem como para o jornal The Guardian.
Segundo informações divulgadas pelo The Guardian, a embaixada britânica no Brasil também acompanha o caso. "O Guardian está muito preocupado e busca urgentemente informações sobre o paradeiro e as condições de Phillips. Estamos em contato com a embaixada britânica no Brasil e autoridades locais e nacionais para tentar apurar os fatos o mais rápido possível", diz a nota.