Unicamp abre as portas para estudantes refugiados
Universidade integra a cátedra Sergio Vieira de Mello da ONU. Proposta é oferecer condições para que esses alunos possam se inserir na sociedade
Educação|Karla Dunder, do R7
Pilos Tsasa deixou seu país, Angola, por conta da perseguição política. Sameh Brglah veio da Síria. Além da situação de refúgio os dois têm algo em comum: são estudantes da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
A universidade integra a cátedra Sérgio Vieira de Mello, uma iniciativa da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) em parceria com centros universitários e o Conare (Comitê Nacional para Refugiados).
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A proposta, como observa a professora que preside a cátedra, Ana Carolina de Moura Delfim Maciel, é de dar oportunidade aos refugiados de reconstruírem suas vidas e integra-los à sociedade.
"O ingresso para refugiados na Unicamp possibilita que o aluno tenha acesso à uma formação acadêmica de qualidade, o que será determinante para uma futura inserção profissional e, consequentemente, para uma reintegração na sociedade,” explica Ana Carolina.
Estudante do curso de engenharia civil, Pilos fez curso técnico de edificações em Angola, antes de deixar seu país após perseguição política. Sempre gostou da área de construção civil. "Costumava acompanhar meus tios que eram pedreiros nas obras, aprendi muito com eles, tinha uma boa noção e seguir nessa área era um caminho certo."
Ao desembarcar no Brasil, Pilos começou a trabalhar na construção civil no Rio de Janeiro. "Eu gosto de estudar e vi que a prefeitura oferecia curso para encarregado de obras, decidi me qualificar mais", conta. Na sequência, fez um curso de eletricidade e um técnico de edificações.
Arrumou emprego como corretor de imóveis, mas a vontade sempre foi atuar na construção civil. "Consegui uma vaga de técnico de manutenção civil em São Paulo, quando fiz a entrevista, ouvi da pessoa que estava me contratando: 'você é muito mais qualificado que eu!'"
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Meses depois soube da oportunidade de estudar na Unicamp. "Reuni toda a documentação no Conare e na Polícia Federal, processo que levou quase seis meses e comecei as aulas bem na pandemia, ainda não tive a oportunidade de ter uma experiência na universidade."
Para que os refugiados possam permanecer no curso, a Unicamp oferece auxílio moradia, alimentação e bolsas para os estagiários. "É importante que eles sejam acolhidos e tenha condições de permanência no curso", explica Ana Carolina.
Sameh Brglah se orgulha em dizer que foi o primeiro estudante refugiado a ingressar no curso de odontologia no campi de Piracicaba. Sameh chegou no Brasil em 2015, o português, como para a maioria dos refugiados, era uma barreira. Mesmo assim, havia a vontade de ocupar um banco de uma universidade.
"Eu falava muito mal o português, mas mesmo assim fui atrás de curso na UnB, não deu certo por falta de documentos", conta. "Quando tentei me inscrever na Unicamp, estava com receio de não conseguir, mas eles me acolheram e foi uma experiência muito positiva."
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Documentação aprovada, entrevistas com coordenadores do curso e direção, Sameh começou as aulas com dificuldade de entender a língua. "Falava bem o inglês, mas não era fácil entender alguns termos em português, os professores, muitas vezes, me chamavam para repetir a aula, indicavam livros e textos em inglês."
Hoje, com o português fluente, Sameh cursa o quinto semestre de odontologia. Já pensa na especialização, em cursar pós-graduação e rever os irmãos que moram na Turquia. "Eu saí do meu país em 2012 e não nunca mais vi minha família, conversamos, claro, mas não pessoalmente."
Pilos quer trabalhar na área, mas de um jeito especial. "Pretendo montar minha empresa e trabalhar em regiões pobres, seja no Brasil ou em Angola, e poder oferecer cursos profissionalizantes para jovens carentes."
Além da sala de aula
A cátedra é composta por professores de diferentes áreas entre eles o reitor da universidade, Marcelo Knobel, o responsável pela implantação na Unicamp.
A cultura de paz é promovida não apenas dentro da sala de aula como em atividades extras que passam por assistência jurídica e social.
Além de acolher os estudantes, são oferecidas uma série de atividades. "Em junho do ano passado, fizemos a pré-estréia do documentário Aeroporto Central, de Karim Ainouz", conta a professora Ana Carolina.
Em novembro, um amistoso de futebol promoveu a integração entre jovens refugiados e indígenas. Fora debates sobre o tema.
A presidente da cátedra na Unicamp, a professora e pesquisadora Ana Carolina Delfim Maciel foi convidada para ser Internacional Fellow no Institut Convergences Migrations (IC Migrations) de Paris. A proposta é trabalhar com as narrativas e trajetórias de vida dos refugiados.
"Lá terei a oportunidade de trabalhar com Michel Agier, um dos maiores estudiosos sobre o tema", conta. "Minha perspectiva é precisamente colaborar com a dimensão das trajetórias de vida desses indivíduos, obrigados a abandonar seus lares, seus familiares, suas cidades, países deixando toda uma vida para trás. “
De acordo com a Acnur, a agência da ONU para os refugiados, a Cátedra Sérgio Vieira de Mello já tem cobertura nacional e abrange 22 universidades, que fazem parte de uma rede, atuando nacional e localmente na agenda do refúgio.