Milei ou Massa: saiba como a vitória de um ou outro candidato afeta a relação entre Argentina e Brasil
Economia brasileira não deve ser prejudicada, mas pode haver impactos para o Mercosul e o desejado acordo com a União Europeia
Internacional|Mariana Botta, do R7
Um tem 53 anos, é economista, professor universitário e ficou famoso em programas de debates da televisão argentina por seu jeito explosivo. O outro tem 51 anos, é advogado, começou na política em 1999 e é o atual ministro da Economia de um país que vive sua pior crise, com uma inflação de 140% ao ano. Um deles, Javier Milei ou Sergio Massa, será o novo presidente da Argentina na eleição de hoje.
Brasil e Argentina são os dois maiores parceiros comerciais da América Latina, e isso não deve mudar, independentemente de quem vença nas urnas. Mas o bom relacionamento entre os países e, sobretudo, os próximos avanços esperados para o Mercosul podem estar ameaçados.
Isso, especificamente, se o eleito for Javier Milei. O candidato da coligação La Libertad Avanza, diversas vezes, durante a campanha, deu a entender que não pretende ter boas relações com o governo brasileiro. Demonstrou hostilidade em relação ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, chamando o brasileiro de comunista, corrupto, presidiário e ladrão.
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Milei e Lula divergem em muitos posicionamentos ideológicos. O argentino é considerado um político de extrema-direita, define-se como um ultraliberal libertário e defende ideias conservadoras, como a criminalização do aborto, a proibição da educação sexual nas escolas, o porte de armas e a inexistência do aquecimento global, entre outras questões polêmicas.
Construiu sua carreira na iniciativa privada e só entrou na política em 2021, eleito deputado de la Nación.
"Milei tem experiência política dos últimos dois anos, nunca apresentou nenhum projeto. É um outsider, não apenas da política, mas também das empresas, do setor privado, porque sempre foi um funcionário de segunda linha, nunca teve muito êxito em nada do que se propôs a fazer", diz Gisela Pereyra Doval, pesquisadora do Conicet (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas), órgão ligado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação Produtiva da Argentina.
"Uma possível vitória dele é preocupante, primeiramente, porque ele nem sequer vai poder administrar o país como uma empresa, porque nunca pôde fazer isso bem com uma empresa", completou.
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Para o cientista político Leandro Consentino, professor do Insper, o que o candidato falou para ganhar o voto dos eleitores pode ficar só em nível discursivo. "Lideranças populistas verbalizam muito, mas não realizam, têm uma retórica forte, que não costuma passar para a ação."
Por isso, pesquisados, professores e especialistas não acreditam em uma ruptura diplomática com o Brasil. "Pode haver um esfriamento das relações, exatamente pela falta de proximidade ideológica, como aconteceu no período em que o presidente era Jair Bolsonaro, que não tinha afinidade com Alberto Fernández [o atual líder do governo argentino]", analisa Consentino.
Victor Missiato, analista político, doutor em história política e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie, também aposta em uma estagnação, não no rompimento das relações entre os dois países. "É importante lembrar que, se Milei vencer, ele não vai poder fazer tudo o que falou nem tudo o que quiser, porque vai ficar dependente do Congresso, que é mais peronista [alinhado com Fernández e sua antecessora, Cristina Kirchner, ambos apoiados por Lula]", diz.
Ele lembra que, em uma perspectiva histórica, Argentina e Brasil já tiveram momentos de muita rivalidade. "Foi na formação das duas nações, na Guerra Cisplatina [de 1825 a 1828, disputa pelo território do Uruguai], por exemplo, e as tensões se estenderam até o fim dos períodos de governos militares, no fim dos anos 1980 e início dos 90", ensina.
"Desde então, a relação é de confiança e de amizade, cada vez mais fortalecida. Na América Latina, Brasil e Argentina são os países mais próximos, não só geográfica e comercialmente, mas pelas características culturais, como a tradição do futebol e o intercâmbio turístico, entre muitas outras coisas", fala Missiato.
Sergio Massa
A expectativa de um resultado conhecido no último minuto da apuração dos votos, realidade bem próxima à vivida pelos brasileiros há pouco mais de um ano, deve ser a dos argentinos hoje. Com a disputa pela Casa Rosada indefinida, nos últimos dias da campanha os dois candidatos adotaram tom mais ameno e menos combativo.
Sergio Massa (da coligação Unión por la Patria), que é político de carreira, recebeu um empurrãozinho do governo Lula na indicação de sua equipe de marketing e apostou na crítica às ideias defendidas pelo opositor e no medo das possíveis consequências da vitória de Milei.
"O discurso de Massa seguiu a estratégia da campanha de Lula no Brasil, de democracia versus autoritarismo. Ele tem o apoio e alguma afinidade com a esquerda, não de toda a esquerda, e de parte dos neoliberais, mas em um movimento menor do que o brasileiro em apoio ao Lula no segundo turno. E, apesar de fazer parte do governo de Alberto Fernández, Massa não é peronista. Por isso, não podemos dizer que, se ele vencer, será uma continuidade", afirma Gisela Doval, do Conicet.
Ela conta que, além de não vir do peronismo, o atual ministro da Economia argentino também não é kirchnerista. "Ele vem do UCeDé [Unión del Centro Democrático], um partido conservador liberal das décadas de 1980 e 1990, e foi se tornando mais liberal. Na verdade, ele não é um peronista clássico, o que significa que, pelas condições econômicas que temos atualmente, necessariamente, vai haver ajustes, um 'girito' neoliberal, algumas políticas liberais."
A pesquisadora explica que o candidato, se eleito, pode fazer mudanças positivas para a Argentina. "Creio que um novo presidente, com um perfil, não diria similar ao de Lula, mas dentro do que temos, mais próximo do que Milei, seria um alento, poderia fortalecer as políticas mais progressistas de Lula em nível regional."
O professor Leandro Consentino, do Insper, diz que a proximidade que já existe entre Sergio Massa e Lula é mais favorável, tanto para a Argentina como para o Brasil. "A economia argentina está em uma situação muito complicada, para qual não existe um milagre possível. Do ponto de vista do mercado, que é avesso a riscos, a eleição de Massa é mais segura, porque ele é conhecido, já dá para saber um pouco o que esperar dele. Isso não acontece com o Milei, que é uma caixinha de surpresas", analisa.
Ao contrário de Gisela e Consentino, o professor Missiato, do colégio Mackenzie, afirma que ter Massa na Presidência vai gerar uma sensação de maior segurança para a Argentina, para o Brasil e para o Mercosul, e que o governo brasileiro ainda pode contribuir muito nas negociações com a China, por mais investimentos no país.
"Mas é provável que a relação da Argentina com Brasil seja de uma dependência ainda maior, não só na economia, mas na diplomacia também", diz o analista político.
Para ele, é possíver ver algo potencialmente positivo para a Argentina em uma vitória de Milei. "A aceleração de uma agenda de reformas liberais, com uma abertura maior do país para outros mercados, é desejável, mas há essa dúvida se ele vai fazer o que o [Mauricio] Macri [ex-presidente da Argentina, de 2015-2019] não fez."
Brasil e Mercosul
Para a pesquisadora Gisela Doval, o Brasil não corre riscos de prejuízos econômicos com a eleição de nenhum dos dois políticos argentinos. "Me parece que, no caso de Milei ganhar, alguns setores industriais do Brasil serão amplamente favorecidos, porque a ideia dela é liberalizar absolutamente tudo, acabar com impostos e tarifas", afirma.
Consentino fala que, se Milei se tornar presidente e optar pelo distanciamento em relação ao Brasil, pode ser que procure por outros parceiros comerciais, que sejam mais alinhados ideologicamente com ele e seu governo. "Mesmo se o mercado argentino diminuir um pouco, ainda vai continuar relevante para o Brasil. Além disso, o governo brasileiro pode e está disposto a ajudar a Argentina a superar a crise em que está, é uma oportunidade para aquele país", avalia.
Missiato também acredita que, com um governo de Milei, novos parceiros podem se interessar pelo mercado portenho, e o Brasil deverá ter mais disputas nas exportações com outros países. "Mas não seria nada drástico, algo em torno de uns 10%", diz.
Ainda considerando a vitória de Milei, o maior impacto seria no Mercosul. "Acho que é bem difícil qualquer presidente decidir sair do bloco, mas o Milei já falou contra o Mercosul, causou constrangimentos, e pode criar entraves que devem esfriar a conclusão do arcordo com a União Europeia", fala Consentino, do Insper.
"Vejo um cenário complexo, mas não necessariamente ruim para o Brasil em termos comerciais. O Brasil é nosso principal parceiro comercial, e a indústria brasileira é infinitamente mais competitiva que a nossa. Vai ficar mais complicado em termos políticos e em outros setores importantes, como o meio ambiente, por exemplo. Digamos que o melhor que pode acontecer, se o bloco não puder avançar, é que se congele", afirma Gisela.
Apesar de futuras dificuldades que o resultado da eleição possa trazer, ela diz que é importante não esquecer que a América Latina é uma zona de paz. "Isso precisa ser sempre destacado, porque as pessoas estão se matando no resto do mundo, e nós temos adversários políticos, mas, no momento, a democracia ainda funciona. Faz 40 anos que funciona aqui", diz a pesquisadora.
"Há democracia em uma zona de paz, e isso não é pouco, mesmo com a ascensão da direita, com a crise econômica. Temos enormes recursos naturais e recursos humanos. Nós, o povo argentino, abraçamos o que temos e o que podemos destacar como positivo, independentemente dos altos e baixos", finaliza.