Nos EUA, a esquerda agora também espalha desinformação durante as eleições
O atentado contra o ex-presidente Donald Trump foi um dos principais temas de teorias da conspiração entre democratas
Internacional|Stuart A. Thompson e Tiffany Hsu, do The New York Times
Vários delegados eleitos, em conjunto com um importante assessor político do bilionário Reid Hoffman, sugeriram, sem apresentar provas, que o ex-presidente Donald Trump pode ter encenado a tentativa de seu assassinato em julho.
Mark Hamill, ator de “Guerra nas Estrelas” e defensor das causas democratas, com mais de cinco milhões de seguidores na plataforma social X, criticou uma proposta política conservadora, insurgindo-se contra ideias que não faziam parte do documento.
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E, no mês passado, a campanha presidencial de Kamala Harris sugeriu enganosamente, em postagens visualizadas milhões de vezes, que Trump estava confuso sobre sua localização durante uma parada de campanha. Os seguidores dela aproveitaram as postagens para alegar que o candidato sofre de declínio cognitivo.
Há anos, a discussão sobre a desinformação on-line vem se concentrando nas falsidades que circulam no campo da direita norte-americana. Mas, nas últimas semanas, uma onda de teorias da conspiração e narrativas falsas também tem sido espalhada pela esquerda.
Alguns observadores de desinformação começam a temer que a nova onda de teorias da conspiração, que emerge agora no campo da esquerda, polarize ainda mais o discurso político antes da eleição de novembro. Mais de um terço dos apoiadores do presidente Joe Biden acreditavam que a tentativa de assassinato poderia ter sido encenada, segundo uma pesquisa feita em julho pela Morning Consult. “Não posso prever que, coletivamente, nos tornemos menos conspiratórios. Acredito que, quanto mais perto estivermos do dia da eleição, mais chances isso tem de aumentar”, disse Adam Enders, professor associado de ciência política na Universidade de Louisville.
Os observadores enfatizam que as falsidades e os exageros que surgem do lado esquerdo do espectro político não são tão arraigados ou tão tóxicos quanto aqueles que, normalmente, permeiam os espaços da direita on-line. Vários estudos mostram que a direita política tem mais probabilidade de compartilhar narrativas falsas e disseminar desinformação do que o outro lado. Pesquisadores da Universidade Northeastern descobriram que os democratas são, geralmente, melhores do que os republicanos para discernir entre notícias verdadeiras e falsas.
Essa não é, no entanto, a primeira vez que a desinformação circula na esquerda. Em 2004, por exemplo, um grupo de democratas desanimados alegou que a reeleição do presidente George W. Bush, que disputou com o senador John Kerry na época, havia sido manchada por fraude eleitoral. Especialistas rapidamente refutaram essas acusações.
Nem Mark Hamill nem a campanha de Harris emitiram comentários para esta matéria. O assessor político de Hoffman se desculpou por levantar suspeitas de que a tentativa de assassinato contra Trump havia sido encenada. E deixou de trabalhar para o bilionário logo depois.
Teorias da conspiração
O tiroteio no comício da Pensilvânia se tornou um para-raios para teorias da conspiração tão logo os tiros foram disparados. Rumores infundados de que Trump havia encenado o próprio atentado se transformaram em teorias da conspiração permanentes, que ainda são compartilhadas por usuários anônimos e por influenciadores liberais com centenas de milhares de seguidores nas redes sociais.
Alguns influenciadores populares no X e no Threads afirmaram que os agentes do Serviço Secreto estavam envolvidos no plano. Outros criaram a teoria que o sangue da bala que atingiu a orelha de Trump era, na verdade, ketchup. E fizeram isso sem se importar com o fato de não haver prova alguma por trás dessas alegações.
Referências à palavra “encenado” surgiram no X nos dias seguintes ao tiroteio, com mais de 300 mil menções, de acordo com um relatório da NewsGuard, empresa que monitora desinformação on-line. Muitos usuários alegaram que o tiroteio havia sido encenado, enquanto outros criticaram a ideia, dizendo que era absurda. Certos usuários de esquerda que compartilharam alguma teoria da conspiração sobre a tentativa de assassinato viram seu número de seguidores crescer, às vezes substancialmente, segundo apurou a NewsGuard.
Joy Reid, apresentadora da MSNBC com mais de 340 mil seguidores no Threads, levantou dúvidas sobre o ferimento do candidato republicano no tiroteio quando os detalhes médicos de Trump não foram divulgados. Alguns de seus seguidores interpretaram o fato como sendo um indicativo de acobertamento. Majid M. Padellan, que é conhecido como “Brooklyn Dad Defiant” no X e que tem mais de 1,3 milhão de seguidores, ampliou essas suspeitas ao oferecer uma interpretação própria do ferimento de Trump. (Mais tarde, o FBI, a polícia federal norte-americana, confirmou que uma bala atingira o candidato.)
A MSNBC não respondeu aos pedidos de comentário. Em uma resposta por e-mail, Padellan defendeu seu questionamento da natureza e do tratamento do ferimento de Trump e das ações do Serviço Secreto naquele dia.
A tentativa de assassinato desencadeou uma onda semelhante de teorias da conspiração do lado direito da política. Logo, essas teorias repercutiram entre republicanos proeminentes, incluindo a de que os democratas teriam ordenado o ataque. À medida que a campanha presidencial continuava, Harris foi alvo de uma enxurrada de falsidades racistas e sexistas de conservadores, que também inventaram falsidades sobre o governador Tim Walz, seu companheiro de chapa de Minnesota. Trump desencadeou pessoalmente uma avalanche de alegações que foram refutadas apenas no mês passado.
As pesquisas mostraram que Trump desempenha um papel importante na disseminação de falsidades pelo lado direito, agindo como se fosse um megafone que leva influenciadores e políticos a espalhar mentiras em sintonia uns com os outros. A desinformação de esquerda, em contraste, tende a se espalhar de forma mais livre e orgânica entre grupos variados de usuários e de organizações, de acordo com o que foi levantado pelos pesquisadores. “Há um mundo de diferença entre o que você ouve episodicamente da esquerda e a produção sistêmica de coisas bastante vis e perigosas que vemos há anos saindo desse ecossistema de direita”, ressaltou Steven Livingston, diretor fundador do Instituto de Dados, Democracia e Política da Universidade George Washington.
Pesquisadores acreditam que o turbilhão da atual campanha ajudou a criar as condições ideais para que os eleitores de todas as convicções políticas se sentissem desconfiados e desorientados. “Quando recebemos uma informação com a qual não sabemos bem o que fazer, temos a tendência de preencher os espaços em branco da narrativa”, disse Whitney Phillips, professora assistente de ética da mídia e plataformas digitais na Universidade do Oregon.
As mídias sociais se tornaram uma grande fonte de notícias para muitos americanos, permitindo que os eleitores se aninhem nos próprios espaços ideológicos, que valorizam o que é viral e exagerado, em vez de observarem as diferentes tonalidades. Os observadores de fatos e seus colegas da área de pesquisas, enquanto isso, lutam para reduzir a desinformação e esperam por mais apoio para executar esse trabalho.
Alegações sem fundamental
Todas essas condições abriram caminho para que até mesmo alegações bizarras chamassem a atenção do país. Com quase 400 mil menções e 4,6 milhões de interações, no período entre 15 e 31 de julho, de acordo com dados on-line e de mídia social analisados pela Hootsuite, uma piada vulgar e falsa sobre o senador J.D. Vance, o candidato republicano à vice-presidência, espalhou-se rapidamente depois que ele entrou na chapa. A piada virou assunto para apresentadores de programas de TV noturnos e até mesmo para a campanha de Harris, que fez alusão a ela nas redes sociais e durante um comício.
Artigos que desmascaram informações falsas de esquerda vêm enfrentando resistência on-line de críticos e vigilantes do jornalismo, que alegam que o processo tradicional de verificação de fatos não é adequado para lidar com falsidades da esquerda. A Associated Press foi duramente ridicularizada on-line por tentar desmascarar a piada escrevendo uma aparentemente séria verificação de fatos que logo foi excluída. A agência de notícias alegou que a verificação de fatos não passara por seu “processo de edição padrão”.
“Como a maior parte do que os democratas estão dizendo é comprovadamente – ou pelo menos discutivelmente – verdade, os verificadores de fatos desceram para minúcias na melhor e na pior das hipóteses”, escreveu Dan Froomkin, fundador do Press Watch, site sem fins lucrativos que cobre jornalismo político.
O Snopes, site de verificação de fatos, está acostumado a ver resistência à sua frequente desmistificação de desinformação de direita. Mas, quando a guerra entre o Hamas e Israel na Faixa de Gaza começou – e desde o início da corrida presidencial deste ano –, o site também passou a ser escrutinado depois de publicar artigos de verificação de fatos sobre falsidades vindas da esquerda, afirmou Doreen Marchionni, editora executiva e gerente do Snopes, acrescentando: “Somos atingidos por todos os lados sempre que aquilo que relatamos não está de acordo com certos pontos de vista, tanto da esquerda quanto da direita.”
c. 2024 The New York Times Company