Distrito rural levado pela lama da Samarco é reconstruído com ares de condomínio de luxo vigiado
Novo Bento Rodrigues, em Mariana (MG), perdeu as características de comunidade secular para estrutura à la "O Show de Truman"
Minas Gerais|Pablo Nascimento, do R7, enviado a Mariana (MG)
Uma placa com quase 2 metros de altura indica três direções: atendimento ao morador e posto de informação à direita; mais à frente, credenciamento.
A parada no local é obrigatória para quem deseja visitar o novo Bento Rodrigues, distrito reconstruído para abrigar os moradores que viviam na comunidade de mesmo nome, levada pela lama de rejeitos da mineradora Samarco, em 5 de novembro de 2019.
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Às vésperas do aniversário de oito anos da tragédia, que matou 19 pessoas e despejou 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos na natureza, o R7 visitou a comunidade. Na entrada, o procedimento padrão: a confirmação de nome completo, CPF, RG e placa do carro — dados que já haviam sido enviados com antecedência. Uma rotina de condomínio fechado para uma comunidade secular que cresceu livre e rodeada pelo sossego da zona rural.
"Se tem morador aqui, eles não podem barrar ninguém", questiona José do Nascimento de Jesus, o Zezinho do Bento. O idoso de 78 anos aguarda a casa dele ficar pronta. A presença na comunidade é constante, embora ainda não tenha se mudado. "Eles colocam um crachá nos carros dos moradores para identificá-los. No meu não vai colocar", critica em relação ao controle feito pela Fundação Renova, entidade criada para administrar os trabalhos de reparação dos danos causados pelo rompimento.
Dentro do subdistrito, o clima de monitoramento continua. Após negar a companhia de assessores da fundação para circular pela vizinhança, a reportagem deparou com vigias profissionais em diversos momentos.
Eles são de uma empresa de segurança particular contratada pela Renova para atuar dentro da comunidade. Segundo a fundação, o esquema de vigilância privada vai ser adotado enquanto houver obras da instituição no local.
"A Fundação Renova mantém contato com a Prefeitura de Mariana para uma transição da segurança privada para a segurança pública, a partir das entregas ao município", alega sobre o futuro.
Os vigias ficam em frente às dezenas de casas em construção, aos comércios e aos prédios que abrigarão serviços públicos como Correios, posto de saúde e Guarda Municipal — nenhum destes ainda em funcionamento.
Casas vazias
O reassentamento manteve os nomes das ruas do subdistrito inundado pelo rejeito de minério. A rua São Bento, que dava acesso à comunidade, também é a via de entrada na nova região. Porém a placa de boas-vindas com o emblema da Estrada Real — Circuito do Ouro deu lugar à central de informações. Veja o antes e o depois de Bento Rodrigues:
As casas do Bento antigo, com referências coloniais, portas e janelas ligadas diretamente às ruas e quintais abrigando animais, deram espaço a casarões modernos, todos feitos de alvenaria e com acabamento pomposo.
Aproximadamente 50 famílias estão vivendo no novo Bento. O projeto prevê a construção de 248 imóveis. Destes, 168 estão prontos, incluindo escola e estação de tratamento de água e esgoto, ambos já em funcionamento.
A presença de caminhões e máquinas pesadas é constante. O barulho de canteiro de obras não para: são 2.419 pessoas trabalhando na reconstrução da comunidade atualmente, número bem maior que o de moradores.
O clima de monitoramento e o grande número de imóveis vazios criam ares de um residencial à moda de O Show de Truman, filme de 1998 que narra a história de um homem que vive em uma cidade criada dentro de um estúdio, em uma realidade inventada para um programa de TV.
Os moradores já ouviram pessoas comparando a nova versão do distrito a um condomínio de luxo localizado em Nova Lima, na região metropolitana de Belo Horizonte — que, por sua vez, foi inspirado em outro famoso da Grande São Paulo.
"Muita gente fala que nós estamos morando em mansões. Mansão é onde a gente vivia antes. Não importa se a casa nem era rebocada, mas vivíamos no paraíso", lamenta Zezinho do Bento.
Transformação social
"Muita gente já se foi aguardando pelo direito [do reassentamento]. Tem pessoas que estão satisfeitas, outras, não satisfeitas com a estrutura da casa, com a forma como o imóvel está organizado e com a própria característica dos reassentamentos", enfatiza Lina Anchieta, coordenadora regional do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens).
Zezinho é um dos atingidos que tiveram problema com o imóvel. O idoso já pediu para a Renova trocar quatro vezes a construtora responsável pela casa de dois andares, com acabamento em gesso e porcelanato. "Agora tem uma empresa competente", afirma.
Os operários estão finalizando o imóvel e consertando falhas já identificadas pelo futuro morador: trincas nas paredes e queda de parte do revestimento de tijolinho marrom são os mais visíveis.
Lina Anchieta chama atenção ainda para as mudanças culturais e sociais que podem afetar os moradores. Entre elas a geração de renda, mesmo com a Renova pagando auxílio aos atingidos. "Antes, Bento Rodrigues era uma comunidade rural. Hoje, é uma comunidade completamente diferente, mudando o modo de vida dessa população", avalia.
Um estudo realizado pela Samarco em 2013 descreveu o "grande valor cultural" do distrito antigo, que à época tinha 418 habitantes. A pesquisa mostra que a região já era ocupada por indígenas antes da colonização portuguesa.
A comunidade, segundo o levantamento da mineradora, foi fundada em 1697. O surgimento ocorreu quando um cabo chamado Bento Rodrigues desceu a serra à procura de ouro e montou um acampamento ao encontrar abundância do metal precioso.
Agora, a realidade é outra. "O terreno é muito íngreme. Ele não aceita ter o que a gente tinha. Eu já perguntei onde eu vou plantar as minhas mexericas ponkan. E minhas laranjas, hortaliças e melão? Onde eu vou colocar minhas vacas?", indaga Zezinho.
Segundo a Renova, os atingidos puderam escolher se gostariam de seguir com a reconstrução do imóvel no reassentamento ou em outro local. Ainda foi dada a eles a opção de comprar e reformar uma casa ou receber a indenização em dinheiro.
"Os projetos das casas das famílias são individualizados. Cada projeto de cada residência é desenvolvido com apoio de arquitetos para cada núcleo familiar. O objetivo é a construção de residências customizadas, com projeto arquitetônico, estrutura e acabamentos escolhidos pelas famílias", detalhou a fundação sobre o processo de reconstrução.
O comerciante Weberson Barbosa, de 43 anos, conhecido como Ebinho, também quis voltar a viver em Bento Rodrigues. "É uma sensação de que a gente voltou para casa", detalha.
A escolha para ele foi com o objetivo de ficar próximo dos amigos e familiares. Antigamente, Barbosa vivia na mesma rua em que os irmãos, o pai e outros parentes. "Enquanto a gente estava nos imóveis alugados em Mariana aguardando aqui ficar pronto, nem todos os vizinhos conseguiram ficar próximos. Agora, estamos nos reencontrando", comemora.
Além de ter tido a casa reconstruída, o comércio dele foi recriado e já está funcionando. É o único aberto atualmente no Novo Bento Rodrigues. Dentre os clientes, os operários da obra ainda são maioria. A segurança é feita por vigias da empresa contratada pela Renova.
A família de Barbosa, no entanto, não está voltando completa. O cunhado dele morreu vítima de um infarto fulminante há um mês. Eles também voltariam a ser vizinhos. "Ontem foi a entrega da chave da casa dele. Então fico pensando no que vai ser de nós amanhã. O que eu puder fazer para quem quiser vir para o Novo Bento Rodrigues eu vou dar o maior apoio. Quem não quiser, eu respeito. Aproveitar o máximo possível com os vizinhos, colegas e família juntos é a melhor coisa que tem. Não há dinheiro que pague", conclui.
A Renova não deu previsão sobre o tempo para a conclusão das obras. "Os prazos de conclusão dos novos distritos são diretamente influenciados pelo processo coletivo e deliberativo que envolve as famílias. O tempo que cada núcleo familiar precisa para definir e aprovar seu projeto é respeitado", esclareceu a fundação.