'Não são as drogas, é o barulho'
Crônica: Discussão sobre bailes funk precisa focar no que realmente prejudica moradores de periferia
André Azeredo|Do R7
"Tum, dum, dum, tum, dum dum. Quem não bafora, não transa."
Três e meia da madrugada de sábado. Uma técnica de enfermagem, grávida de 4 meses, esfrega as mãos no rosto com força. Decide sentar na beirada da cama. É perda de tempo ficar deitada. Ela suspira pesado. Levanta resmungando.
"E aí irmão, humildade e disciplina, tum, dum, dum."
Acende a luz do banheiro e se lembra pela milésima vez que precisa trocar o interruptor. Também precisa trocar o piso. Mas agora não dá pra gastar. No reflexo do espelho do banheiro, percebe as olheiras. Parece até um urso panda. Não é pra menos. O ponteiro do relógio voa. Daqui a pouco vai ter que "acordar".
"Tum dum dum, senta, senta, senta."
É o plantão dela no hospital. Sabadão. Sempre tem gente pra caramba. Tá na hora. O banho é o dureza. A pouca água quente que sai do chuveiro dá um preguiça. Mas tem que trabalhar.
Quando ela abre porta, entra em casa com força o motivo da insônia.
"Tum, tundum, tum, tum. Desce, sobe, senta na p* no baile do Helipa."
Que som alto! Mas pensa num som alto. Quantos decibéis? Acho que todos do mundo. Nossa guerreira sai na calçada para ir pro ponto de ônibus. Como tem gente na rua com os sol nascendo! Que horas eles chegaram? Tem que desviar de pessoas gritando, rindo alto, as motos acelerando, brigas escandalosas.
"Tum, dum, dum ... Agora eu vou te com* só de raiva"
Quando nossa guerreira cochila sentada no horário de serviço, deixa de cumprir responsabilidades. Toma uma bronca da chefe que reclama:
- Todo plantão é a mesma coisa, hein, Janete. Sempre cansada, dorme, desatenta, erra. Difícil hein!, fala alto a enfermeira
- É o baile funk!
- Tu gosta de um tumulto, é? Ficar com um bando de maluco usando droga e bebendo por horas. Porque é só isso que eles fazem. Droga, álcool, briga e put*.
- Olha, eles podem fazer isso tudo. Não controlo a vida de ninguém. Em festa chique também tem muita droga. Muita bebida. Tem viciado nos Jardins, em Moema.
- Mas no baile do Heliópolis é pior, com certeza!
- O barulho. Isso sim é pior. Não são as drogas, é o barulho. O maldito barulho. Uma música ensurdecedora. Por horas! Não precisava ser na rua, no meio das casas, na minha janela!
- Você devia se mudar.
Nossa guerreira lembra do contra-cheque, das contas para pagar, do bebê na barriga, da mãe doente. Se levanta, pede desculpa pelo cochilo e vai atender mais pacientes.
Este é um texto de ficção, mas qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.
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