Mãe, saudade e pandemia
Se pudesse, queria muito conversar com minha mãe sobre a era da pandemia, as reflexões sobre as relações e projeções de um futuro incerto
Eduardo Costa|Eduardo Costa
O isolamento tem lá suas vantagens e uma delas é nos dar tempo para reflexões sobre as relações, as projeções sobre um futuro incerto e as lembranças daqueles que conviveram conosco e não conheceram a era da pandemia. Se pudesse, queria muito conversar com minha mãe a respeito. Não apenas pela singeleza de sua sabedoria, o valor da sua experiência, mas, especialmente, pela franqueza e espontaneidade com que definia as questões mais difíceis.
Quem acompanha meu trabalho há mais tempo já me ouviu várias vezes lembrando a tarde do dia 1º de janeiro de 2001 quando, pouco depois de sair da rádio, às 14 horas, já estava na casa dela para o almoço. Estava ansioso por fazer uma pergunta que julgava perturbadora e, depois da saudação, fui para o ataque:
— Dona Miralda, a senhora sempre falou, com base na religião, nas escrituras, na sua fé que ...”de mil passará, a dois mil não chegará”; e agora, que já estamos em 2001, o que me dizes?
Com seu primário incompleto, sem português rebuscado ou preocupação com a forma, ajeitou os óculos e devolveu com outra indagação:
— E não acabou?
E antes que eu assimilasse o golpe inesperado, arrematou:
— Cê que num viu, meu filho, mas já acabou há muito tempo!
O mundo com o qual dona Miralda lidara na meninice, na juventude e em parte da idade adulta realmente não tinha nada a ver com os novos tempos, de televisão, internet (de gente e das coisas), preocupações ecológicas, direitos humanos, gabinetes do ódio...
Não sei o mundo melhor é o de hoje, mas como gostaria de ter vivido mais o tempo da dona Miralda, com ela... Há poucos dias, lembrava-me da nossa Semana Santa com ramos num domingo, vigília na quinta, procissão do enterro na sexta (quando era proibido brigar com o irmão, varrer casa e até pensar bobagem) e Páscoa cheia de balas e doces no domingo; maio, com ela, era reza, coroação de Nossa Senhora e leilão, que, para ser bom mesmo, tinha de ter cartuchos recheados de amêndoas.
Não sei qual seria a reação de dona Miralda ao isolamento, mas, neste Dia das Mães, bateu uma saudade tão grande do colo dela.
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