Policiais forjavam denúncias e usavam 'kit flagrante', afirma MP
Segundo a acusação, agentes da polícia civil da Dise de Taubaté invadiam casas sem mandado judicial e até prendiam inocentes
São Paulo|Fabíola Perez e Kaique Dalapola, do R7
Policiais civis da Dise (Delegacia de Polícia de Investigações sobre Entorpecentes) de Taubaté se apropriavam de drogas, com o conhecimento do superior hierárquico, para forjar prisões em flagrante. Além disso, os policiais criavam denúncias anônimas de próprio punho para justificar diligências sem mandado judicial.
Esse procedimento foi apontado, em denúncia oferecida pelo Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) do Vale do Paraíba, à 3º Vara Criminal de Taubaté (SP). Os policiais acusados foram condenados em primeira instância e aguardam julgamento do recurso.
De acordo com o MP-SP (Ministério Público do Estado de São Paulo), as porções de drogas eram usadas para montar o chamado “kit flagrante”.
A denúncia aponta que as substâncias entorpecentes chegavam das ruas, de apreensões não formalizadas, por desvio da delegacia ou adquiridas de supostos traficantes que teriam como hábito pagar o “carnêzinho” — como era chamada a possível mensalidade cobrada de supostos traficantes em troca de benefícios.
A operação realizada no dia 29 de janeiro de 2016, iniciada a partir de interceptações telefônicas, ajudou a esclarecer o suposto envolvimento de policiais civis com práticas criminosas, segundo conta o promotor de Justiça Alexandre Affonso Castilho, do Gaeco de Taubaté.
O promotor afirma que flagrou na casa do investigador de polícia Iran Carvalho possíveis elementos utilizados para comprometer vítimas. Na ocasião, o “kit flagrante”, que seria usado para incriminar inocentes ou usuários de drogas, foi encontrado em um dos armários do policial.
De acordo com Castilho, o investigador de polícia foi preso e autuado em flagrante por tráfico de drogas. A investigação encontrou também uma quantia de R$ 1.000 na casa do policial Aderson. “Era dinheiro trocado, típico de tráfico de drogas”, afirma o promotor.
O MP-SP concluiu, com a investigação, que “o único órgão da Polícia Civil especializado na investigação e combate ao tráfico de drogas em Taubaté e região iludiu a sociedade, prejudicou pessoas, alguns inocentes, e trabalhou na proteção e no interesse de um grupo de importantes traficantes”.
COMO OS POLICIAIS AGIAM
A denúncia do Ministério Público afirma que os policiais Aderson e Flávio Augusto eram os maiores canais de comunicação da Dise com os criminosos da cidade e, em função da experiência, se sobressaiam sobre os demais.
“Aderson, em especial, centralizava uma extensa rede de informantes e, com as informações quentes que dispunha, propiciava a localização de pessoas e locais, alvos de prisões e buscas”, diz a denúncia.
O policial Flavio da Cruz teria, segundo as investigações, relação mais próxima e antiga com o delegado Marcelo Duarte. Em função disso, ele seria o principal encarregado de produzir denúncias anônimas falsas.
A denúncia aponta que Flavio e Iran seriam os responsáveis por transformar inocentes ou usuários de drogas em traficantes.
“Flavio era o policial que sempre encontrava a droga nas diligências falsas”, diz Castilho. “As vítimas das extorsões não se conheciam e narravam o mesmo modus operandi: ele tirava a droga do colete e a ‘encontrava’ nos lugares”, completa.
As diligências (abordagens em domicílios) da equipe de investigadores eram justificadas, segundo a denúncia, por meio de relatórios e denúncias anônimas produzidas falsamente.
Além disso, ainda de acordo com a denúncia, eram criados depoimentos falsos, imperfeições e falhas nos procedimentos investigatórios. O documento do MP-SP aponta que o investigador Alexandre Wagner Campos de Paula e o delegado Marcelo Duarte tinham conhecimento sobre a maioria dos atos ilícitos supostamente cometidos pelos subordinados.
“As ações do grupo geravam benefício para todos, aumentando o prestígio dos ‘tiras’ perante os colegas e impressionando os desatentos com os números de prisões e apreensões de entorpecentes da Dise de Taubaté”, diz a denúncia.
EXTORSÕES DE INOCENTES
“Seis investigadores da Dise, objetivando a obtenção de vantagem ilícita, programaram-se para invadir ilegalmente a casa de João*. O plano era extorqui-lo, ameaçando prendê-lo em flagrante por tráfico de drogas, utilizando-se do kit flagrante”, diz a denúncia.
De acordo com a denúncia oferecida pelo Ministério Público, os policiais civis da Dise extorquiam pessoas inocentes e faziam apreensões para mostrar trabalho na delegacia. Segundo o MP-SP, a equipe policial invadia residência de pessoas sem mandado judicial.
Os policiais teriam informado ao delegado Marcelo Duarte de que haveria droga na casa de João e ele teria autorizado seus subordinados a invadir a casa do suspeito.
O documento relata que Flávio da Cruz teria pego porções de drogas de origem desconhecida (cocaína em pó e em tabletes) e, no dia 30 de novembro de 2015, os policiais da Dise teriam invadido a residência da vítima.
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Segundo os relatos, os policiais teriam entrado com as armas em punho na casa em que João vivia nos fundos com a mulher e a filha. Segundo a denúncia, vítima do flagrante forjado foi imediatamente localizado, algemado no quarto e levado para a sala.
Os policiais teriam, então, passado a exigir drogas e armas. João, aponta a denúncia, insistia em dizer que não possuía. Flávio da Cruz teria sacado as porções de cocaína em pós e se dirigido ao sofá, dizendo que havia localizado as substâncias ilícitas no móvel.
APREENSÕES SEM MANDADO
Outro caso de extorsão teria sido planejado em julho de 2015. Segundo o Ministério Público, os policiais acusados teriam recebido a informação de que o ex-usuário de drogas José* havia recebido uma indenização da empresa em que trabalhava no valor de R$ 140 mil.
Com exceção de Iran, os demais investigadores da Dise teriam planejado extorquir o ex-usuário. Ele seria preso em flagrante por tráfico de drogas, por meio do kit flagrante.
Os relatos indicam que Flavio da Cruz teria se abastecido de porções de drogas (cocaína e maconha) e ido com outros policiais à casa de José em viaturas descaracterizadas, por volta das 18h40 do dia 13 de agosto de 2015.
No momento em que a suposta vítima chegava em casa, a denúncia afirma que os policiais a abordaram com as armas em punho.
“Flavio da Cruz dirigiu-se à porta traseira do veículo de José e já retornou com a porção de maconha que havia levado, dizendo que ela foi localizada no automóvel”, aponta o documento do MP-SP.
Ainda de acordo com o Ministério Público, Flávio da Cruz afirmou que havia encontrado mais drogas no interior da casa de José, embora não tivesse mostrado aos colegas.
“Os policiais colocaram José em uma viatura e passaram a exigir R$ 20 mil para não o prenderem”, diz o documento. “Inviabilizada a negociação, José foi conduzido à Dise, onde Flavio da Cruz apresentou uma porção de maconha e cocaína, dizendo que era da vítima”, segundo a acusação.
DILIGÊNCIAS FORJADAS
Para justificar a ida à casa da vítima, o policial Flavio da Cruz teria criado uma denúncia anônima, informando as características de José, endereço e automóvel. O delegado Marcelo, por sua vez, teria feito um falso despacho também para “dar ares de legalidade à diligência”.
“Descobrimos que as justificativas deles eram falsas, não havia uma investigação prévia e as invasões ocorriam sem o mandado judicial”, diz o promotor de Justiça.
Castilho ainda afirma que “os policiais não cumpriam o regulamento da Polícia Civil, não fotogravam os materiais encontrados”.
A POSIÇÃO DAS DEFESAS
Marcelo
Segundo a defesa do delegado, feita pelo advogado Adilson José Vieira Pinto, Marcelo "desconhecia essa prática" de uso de supostos kits flagrantes. Vieira Pinto afirma que "em nenhum momento ele foi denunciado por associação ao tráfico, nem nenhum ato de corrupção" e destaca o fato do policial seguir em liberdade e nunca sequer ter sido preso.
Sobre as possíveis invasões de domicílio, a defesa afirma que "o proprietário da casa autorizou o ingresso de policiais para fazer uma fiscalização no imóvel". E completa dizendo que, "em outros casos, policiais da delegacia encontraram material entorpecentes nas casas".
Vieira Pinto acredita que o Ministério Público "entendeu que, porque não havia um mandado de busca, houve violação porque os policiais não tinham mandado de busca. Mas a própria legislação constitucional prevê hipóteses que a polícia pode entrar no imóvel sem estar munida de um mandado de busca expedido por um juiz".
Iran
Para o advogado Leonardo de Almeida Maximo, seu cliente Iran Carvalho não tem nenhum envolvimento com tráfico de drogas e outros crimes na região de Taubaté.
O defensor afirma que “não há nenhuma prova cabal do envolvimento” de Iran com os supostos traficantes citados pelo Ministério Público. Sobre a possível ligação do policial Iran com os homens apontados como traficantes na região, Maximo afirma que Iran só conhecia os suspeitos “de ouvir falar por conta de ser policial daqui [de Taubaté]”.
“Ele conhecia, mas não recorda agora, de nome, quais ele já tinha ouvido falar. Mas de conhecer e ter qualquer contato pessoal, não tem nada disso, não tem nos autos, nenhuma ligação, nenhuma filmagem, nenhuma foto, nem informação de que ele tinha algum conhecimento ou algum contato com aquelas pessoas”, afirma o advogado.
Aderson
Segundo a defesa de Aderson Leandro Silva Pinheiro, feita pelas advogadas Juliana Bignardi e Thaís Petinelli, do escritório Bialski Advogados, afirma que o policial não tinha conhecimento das supostas denúncias forjadas.
“Todas as denúncias que originaram as operações e apreensões realizadas por Aderson e sua equipe durante toda sua atuação como policial civil foram legítimas, muitas vezes trazidas ao seu conhecimento por cidadãos comuns por meio do disque denúncia, ou ainda, as informações chegavam ao seu conhecimento através de investigações difusas a outros indivíduos”, disse.
Em resposta por e-mail ao R7, as advogadas ainda dizem que, "durante todos os seus anos como policial civil, Aderson nunca utilizou ou teve conhecimento da utilização do chamado ‘kit flagrante’ por nenhum de seus parceiros de trabalho".
A defesa ainda afirma que Aderson tem conhecimento das diligências nas casas das duas supostas vítimas, mas afirma que as ações foram legítimas. “As acusações das supostas vítimas são tão somente para beneficiarem-se, falsamente acusando os policiais civis”.
Flavio da Cruz
O R7 entrou em contato telefônico com o escritório do advogado Emilio Sanchez Neto, que defende o policial Flavio da Cruz, na última terça-feira (6), quando foi publicada a primeira reportagem citando o policial. Na ligação, a informação passada foi que o advogado não estava e retornaria quando possível. No entanto, não houve retorno.
Na sexta-feira (9), o R7 entrou em contato novamento com a defesa do policial. A informação desta vez foi que o advogado Sanchez Neto já estava ciente sobre as reportagens, mas só retorna ao escritório depois do Carnaval.
Flávio Augusto
A reportagem entrou em contato telefônico com escritório de Alexandre Almeida de Toledo, responsável pela defesa do policial Flávio Augusto dos Santos, na sexta-feira (9). O defensor, no entato, não estava no local.
Na quinta-feira (8), o advogado Angelo Lucena Campos, outro defensor de Flávio Augusto, disse que o advogado Alexandre é advogado que está por dentro das denúncias contra o policial, mas ele não estava no escritório e poderia atender à reportagem na sexta-feira (9) — o que não se concretizou.
Na quarta-feira (7), o R7 também havia procurado a defesa de Flávio Augusto, mas também havia sido informada que o advogado Alexandre não estava e só poderia atender à reportagem na tarde de quinta-feira.
Na terça-feira (6), o R7 chegou a conversar por telefone com o advogado Alexandre. Ele disse que não poderia atender a reportagem e retornaria o contato. O R7 também enviou os questionamentos ao advogado por e-mail, no entanto, não houve retorno.
Alexandre
O R7 não localizou a defesa do policial Alexandre Wagner Campos de Paula. Segundo a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo), o investigador está solto. No entanto, foi retirada arma e distintivo dele.
Segundo o promotor Castilho, Alexandre era “braço direito do delegado”.
“Pedimos apenas o afastamento cautelar [de Alexandre] em razão da mesma situação do contexto probatório em relação ao delegado. Também não conseguimos imputar a ele os mesmos crimes dos demais”, disse o promotor de Justiça
*Os nomes das vítimas são fictícios.
Veja quem são os policiais civis acusados: