‘Nunca pensei em fechar. Aqui é uma resistência’, diz dono da última videolocadora periférica de São Paulo
Há 30 anos à frente da ‘Charada’, no Sapopemba, Gilberto Petruche já alugou quase 900 fitas em um único dia, mas hoje desfruta do que sempre quis: falar sobre cinema
Entrevista|Arnaldo Pagano, do R7
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Produzido pela Ri7a - a Inteligência Artificial do R7

Em 1995, quando estava alugando o espaço para realizar o sonho de montar uma videolocadora, o ex-gerente administrativo Gilberto Petruche tinha 20 concorrentes num raio de 1 km no bairro do Sapopemba, na zona leste de São Paulo. Ao dizer para o dono do imóvel que trabalharia diferente, apostando em filmes fora do circuito comercial, ouviu do proprietário, a quem trata com muito carinho, a projeção de que fecharia em três meses. Em 2025, a ‘Charada’ completou 30 anos de existência, como uma das quatro videolocadoras ainda ativas na cidade de São Paulo, a única localizada na periferia.
Nessas três décadas, passou do VHS para a explosão do DVD, chegou a alugar 890 filmes num único dia, atravessou o advento do streaming, uma pandemia e revela que, hoje, a locação não paga nem a luz e a água do espaço que usa. Durante as três horas em que a reportagem passou na locadora, para um bate-papo, um café e uma visita a um espaço carregado por nostalgia, a entrevista foi interrompida algumas poucas vezes — um garoto do bairro encantado com o lugar, um amigo que passou para conversar, um grupo de rapazes que já se apresentou por lá, uma mulher que trouxe a doação de um toca-discos e outra que procurava uma mídia de uma festa de casamento que ela havia deixado para digitalizar há, pelo menos, dois anos. Ou seja, não entrou, no breve período, nenhum pagamento, seja por dinheiro, cartão ou Pix, de venda ou aluguel.
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Mas, engana-se quem pensa que a situação leva um ar de melancolia à loja de pé direito alto — que faz Gilberto brincar que está no ‘vão do MASP de Sapopemba’ —, totalmente iluminada, com prateleiras limpas e organizadas e um estiloso piso artesanalmente feito com vinis quebrados que ele foi recebendo ao longo dos anos. “Sou um acumulador de cultura”, diz, ao celebrar o local que hoje também abriga shows musicais, alguns cursos e pequenas mostras de cinema. É nesse espaço, atrás do balcão, que agora Gilberto se realiza de uma forma que não conseguia quando alugava centenas e centenas de filmes por dia e se sentia dentro de Tempos Modernos, de Chaplin. Adepto do cinema nacional e fã incondicional de Glauber Rocha, ele tem o tempo que sempre quis para falar, debater e indicar filmes.
As indicações, aliás, saíram de trás do balcão e ganharam as redes sociais, por meio de um perfil chamado ‘Rinha de Cinéfilo’, no qual Gilberto já gravou diversas vezes para revelar suas preferências em uma espécie de mata-mata cinematográfico. Os vídeos lhe renderam visibilidade, admiradores e, é claro, algum hate. Ele só perdeu a paciência mesmo quando um comentário acusava o estabelecimento de fazer lavagem de dinheiro. Confessa que chegou a escrever os maiores impropérios para o agressor, mas pensou bem, apagou tudo e preferiu uma resposta mais polida fazendo um convite a conhecer a ‘Charada’.
Hater à parte, o sucesso virtual fez com que pessoas até de outros estados visitassem a videolocadora. Nada que comova muito a esposa de Gilberto, que não entra na ‘Charada’ há dez anos. Ao voltar para casa e contar a ela que um fã viera do Espírito Santo para conhecê-lo, ouviu: “Comprou o quê?”. Mesmo com a resistência em casa, ele revela convicto que nunca pensou em fechar mesmo nos tempos mais difíceis. Tanta convicção não se vê quando é perguntado sobre o futuro e o que será do seu acervo de mais de 20 mil mídias físicas. Ele só sabe que não quer abandoná-las: “São meus filhos”.
Confira a entrevista com Gilberto Petruche:
R7 - Primeiro, gostaria que você voltasse ao início da Charada, em 1995. Pelas minhas lembranças, essa era uma época de auge das videolocadoras, viviam sempre lotadas. Por que você decidiu abrir e como foram os primeiros anos?
Gilberto Petruche - Eu já abri com uma perspectiva de mercado de venda, me perguntavam: “Você tem certeza que vai ter uma locadora?” Porque a curva tinha subido e já estava se estabilizando, até um pouquinho já em queda, porque o auge mesmo foi alguns anos antes. Uma época que você trazia uma fita de casamento da sua casa e você alugava. O pessoal estava ávido porque era uma coisa nova. Em 95, quando eu abri, já havia uma dúvida. Já se falava em TV a cabo e também em uma nova mídia, que seria o DVD. Sempre foi um mercado muito volátil, você tinha a informação que ia acontecer alguma coisa. E eu nunca fui empreendedor, tinha um medo desgraçado, porque não tinha estoque financeiro.
Mas para mim foi uma redenção também. Eu era gerente administrativo financeiro de uma empresa grande, ganhava bem, mas historicamente 95 foi um ano muito complicado economicamente e algumas empresas simplesmente não pagavam. Então eu saio e faço meu sonho que era montar uma locadora, mas antes fui ser vendedor para conhecer o mercado.
Então, a perspectiva naquele momento era de incógnita, muitas interrogações. Tanto que, quando eu vim alugar esse espaço, que não era exatamente este, mas o de baixo, o dono do lugar, que era dono do quarteirão todo, perguntou: “Você tem certeza? Olha, aqui tem 20 locadoras, algumas estão fechando”. E eu falei que ia trabalhar diferente, aí é que foi a sacada.
R7 - Diferente como?
Gilberto Petruche - Se você pegar daqui de onde está a loja, num raio de 1 km havia 20 locadoras, 21 com a minha. E eram todas muito iguais. Todas eram financeiras, pragmáticas, queriam ganhar dinheiro. Eles abriram a locadora porque era a ‘paleta mexicana’. Era moda, em cada esquina tinha uma locadora. E eles trabalhavam só com filme que aluga, era o blockbuster, era o Batmam, e isso, e aquilo. É engraçado porque eu lembro que falei para o dono desse espaço: “Seu Amado, eu vou trabalhar de uma forma diferente, só com filmes brasileiros, argentinos, chineses, mexicanos, iranianos, libaneses — ele era libanês”. E ele responde: “Então, meu filho, eu não vou te alugar porque você vai ficar três meses e vai fechar”. Eu expliquei que o diferencial seria funcionar como um clube, com sessão de cinema, conversar, trocar ideia e falei que sou muito honesto em pagamento. Ele alugou e faz 30 anos que eu estou aqui.
R7 - Então desde o começo a ideia era ser mais do que uma locadora...
Gilberto Petruche - Era, mas logo o clube foi para o espaço. O clube era o quê? Um lugar para bater papo, trocar ideia, saber de filme, explicar novas tendências. Esquece, era só alugar. Aí passou a ser aquela coisa de ‘Tempos Modernos’. Você abaixava a cabeça e ia recebendo e entregando fitas. Tinha um lado bom e um lado ruim. Ótimo, entrava dinheiro para cá, só que não tinha conversa. Tinham filas. O dia em que eu mais aluguei filmes foi no dia 1 ou 2 de janeiro de 2000 ou 2001, sempre tenho essa dúvida. Foram 880 fitas VHS alugadas. Fora o pessoal que vinha abrir carteirinha, foram umas 19 só nesse dia.
R7 - E esses aluguéis eram sobretudo de blockbusters?
Gilberto Petruche - Então, boa observação. Só voltando um pouquinho nesse assunto. Minha ideia era fazer uma locadora diferente para trazer cultura para o bairro. É um bairro pobre, mas naquela época era um bairro bem politizado. Tinha uma cultura enrustida lá, de pessoas trabalhadoras com uma visão interessante. Só que só tinham as locadoras como ponto de cultura. A biblioteca ficava longe, ainda não tinham os CEUs. Minha ideia era falar: “O filme brasileiro é bom, tem que saber assistir ao filme brasileiro”. Eu queria trocar essa ideia, só que quando começa a vingar você nem olha na cara do cliente.
E eu sempre disse, desde o primeiro dia. Em todo comércio, o cliente sempre tem razão. Aqui, não! Para ter razão, ele vai ter que ter razão, vai ter que trazer elementos para contestar. Eu amo Glauber Rocha e entendo quem não goste. Agora, eu não vou entender quem fala que ele não presta e nunca assistiu. Aí a gente vai discutir.
Eu lembro de uma menina que assinava Pitt no nome dela, de tanto que ela gostava do Brad Pitt. Eu aluguei ‘Clube da Luta’ para ela, e ela disse: “Gilberto, eu sempre gostei das suas indicações, mas esse filme é horrível”. E jogou o filme. É fácil você ‘quebrar’ a pessoa. Perguntei quantos minutos ela tinha assistido, e eram só 10 minutos. Falei que só voltaríamos a discutir quando ela visse o filme inteiro. Ela voltou e pediu até o banner que eu tinha aqui atrás. Eram raros os momentos que eu tinha para isso, só quando alguém reclamava muito do filme. Aí eu parava a fila para explicar. Às vezes eu dava filme brasileiro de brinde. Muita gente passou a gostar do cinema brasileiro graças à minha intromissão. Muita gente passou a gostar de outro cinema graças a isso, que era o meu papel, era a coisa que eu mais gostava de fazer.
Teve um caso muito legal que o pai chegou com o filho de uns 15 anos aqui e disse que o filho ia vir algumas vezes sozinho e que não podia alugar qualquer filme, porque era de uma família conservadora. Não podia nem filme de Walt Disney! E esse rapaz, Alisson, vinha alugando, uns dois, três anos alugando, aqueles filminhos bem babaquinhas que a família orientava. Ah, chegou um dia que eu falei: “Não, esse garoto, eu vou tentar dar um outro trilho para ele”. Cara, ele já tinha 18 anos. Eu fui aumentando um pouco o degrau, sabe? Mas eu aumentei... Sabe quando você pula três degraus de uma vez? Não sei se você conhece: Gaspar Noé, você conhece o diretor? Eu mandei para ele Irreversível. Teve um documentário de TCC que fizeram aqui chamado Persistência. A menina perguntou: “Gilberto, tem algum cliente que você acha que possa ter influenciado?” Eu citei alguns. E eu nem soube, mas entrevistaram ele. Foram até ele e ó [mostrando o braço]: Irreversível, tatuado.
Nota do repórter: nesse momento, um amigo de Gilberto adentra a videolocadora. A entrevista é interrompida por alguns instantes. O amigo não estava lá para alugar um filme, mas para conversar com Gilberto, que explica sobre minha presença. O amigo se despede e vai embora, não sem antes dizer que estaria indo ao cinema, para ver o novo filme de Superman. E assim continua a entrevista:
Gilberto Petruche - Eu não ia ver o Superman nem se me pagasse. Aliás, eu caí muito de pau no Superman, sabe? E eu sou famoso aí porque teve uma rinha [Rinha de Cinéfilo] que deu 8 milhões de visualizações no TikTok. E na rinha você tem que responder entre um e outro. E nessa me perguntaram se eu gostava mais de Ainda Estou Aqui ou Rock, O Lutador. Essa ficou fácil, porque eu sou apaixonado pelo cinema brasileiro. E o cara da rinha veio aqui e os meus vídeos deram tanta visualização que ele vem sempre. E nessa ele já sabia que eu não gostava do Stallone, do Rock, todos os filmes de mis de 200 milhões de dólares, eu não gosto, para mim isso é a morte do cinema, para o meu gosto pessoal. Nada contra quem gosta. Aliás, Glauber falava: “Tá chegando o Super-Homem, não assista, não deixe os seus filhos assistirem, vão assistir ao Zé do Caixão”. Glauber falava assim. Mas eu não gosto de filme de 200 milhões de dólares. Eu prefiro dez filmes de 20 milhões a um de 200. Eu sou muito mais Cinderela Baiana do que qualquer Super-Homem.
R7 - Você sempre foi cinéfilo?
Gilberto Petruche - Sempre, desde pequeno. Eu me lembro de 10 anos de ser apaixonado por cinema sem nunca ter ido ao cinema. E assistir muita televisão em preto e branco. Passava muito bang bang, que eu não gosto. Mas sempre gostei do cinema brasileiro, impressionante. Eu me identificava com o cinema brasileiro porque parece que é coisa que eu tô vendo na rua, tô vendo em casa. Eu sempre gostei muito de Zé do Caixão, também. Quando aqui chegavam 300 filmes, a primeira coisa que eu ia assistir eram os filmes brasileiros. Mas eu sempre gostei, sim, de cinema. Gozado que eu gostava inicialmente pelo jornal. Um irmão meu assinava a Folha de São Paulo e o outro, o Estadão. Então tinham dois jornais em casa. E havia páginas e mais páginas de cinema. E eu me lembro que a Folha de São Paulo tinha uma tal de ‘bolsa de cinema’, onde ela catalogava tudo. E desde que eu aprendi a ler, com 8 anos, eu ficava olhando aquela ‘bolsa’ para torcer para um filme brasileiro subir. E eu lembro quando chegou nessa bolsa o Deus e o Diabo na Terra do Sol, nos anos 60, e esse é meu filme número 1 até hoje. Mas eu era apaixonado por ver as fotinhas dos filmes.
Em 66 eu vou pela primeira vez ao cinema. Assisti O Corintiano, no Mazzaropi, na Rua da Mooca, nunca vou esquecer. Foi o encantamento, aquele lance de abrir a cortina, eu travo e vejo aquela tela enorme. O segundo foi A Volta ao Mundo em 80 Dias. E depois, eu, como gerente administrativo, fui um grande locador de filme em locadora. Eu alugava dez filmes, sete filmes, oito filmes, pagava multa pra caramba.
R7 - Você tinha esse hábito de alugar muito?
Gilberto Petruche - Tinha esse hábito. Eu era até conhecido nas locadoras porque alugava muito, e sempre esses filmes diferenciados. Muito raramente eu alugava um Indiana Jones e tal, porque a família pedia, minha mãe, ou depois a milha mulher. Mas então eu alugava mais, logicamente, sempre o meu gosto, em primeiro lugar. Tanto é que a primeira locação que eu faço é no Shopping Center Norte, na Vila Guilherme. Eu trabalhava lá perto e ia almoçar no shopping. E eu alugo em Betamax [conhecido como Beta, era um formato de vídeo analógico que perdeu espaço para o VHS], porque o meu primeiro vídeo foi em Betamax. Eu aluguei um lote de cinco vídeos, e o primeiro que fui assistir foi um filme branco e preto, brasileiro e documentário. Quer dizer, tudo de ruim, concordamos? Jânio 24 Quadros, foi o primeiro que assisti dessa minha primeira locação.
R7 - Você lembra o ano?
Gilberto Petruche - Eu sempre vou errar por um ano ou dois, mas eu sei que entrei nessa empresa [perto do shopping] em 86 e saí em 90. Eu chutaria 87, 88. Final dos anos 80. E eu lembro que eu comprei um Betamax, porque o VHS era muito caro. E eu pesquisei locadoras em Betamax. E o primeiro filme que eu comprei, foi em VHS, foi o Drácula. Porque ele estava numa prateleira de filmes à venda. Nada de interessante, mas o Drácula me interessou. E foi o primeiro filme que eu comprei, por isso ele está cadastrado como número 1, inclusive.
Mas o cinema está muito na minha vida. O cinema e o futebol. São dois assuntos que eu amo e me sinto bem para falar. E política. Tudo o que é cultura. Agora, o resto, a gente vai conversando. Aí eu já não bato aqui na mesa, mas o resto em bato aqui [apontando o balcão a locadora]. Já dei cada porrada aqui. “Ah, esse filme não presta”. “Pera lá, vem cá, vamos conversar”. Tanto que hoje eu não indico mais filme porque é pouca gente que vem alugar. O que eu faço? Toda sexta-feira eu indico três filmes no Instagram. Não ganho nada com isso, mas acho gostoso pra caramba fazer. E gosto de fazer no improviso, sem nenhum roteiro. E gravei agora o número 100.
R7 - Então, só aí, tem 300 filmes que você indicou.
Gilberto Petruche - Se você assistir ao vídeo que vai sair. Eu não sei o horário, porque a gente é muito ruim de marketing, de merchandising. Mas no vídeo, numa dessas coincidências, o Edu [amigo que faz as gravações], fala que são 300 e me pergunta se eu lembro do primeiro. Eu falo que sim, mentira né. E por coincidência eu estava com o Amnésia, do Nolan, na mão. E eu faço com uma brincadeira com isso, já que havia esquecido qual era o primeiro.
Mas o legal é que a gente faz para nós. Lógico que, se alguém assistir, a gente fica muito contente. Mas eu faço isso porque hoje é muito raro alguém pedir indicação. E a coisa que eu mais gostava de fazer dentro do seu gosto era indicar um filme.

R7 - Hoje quem vem alugar filme aqui? Você falou que é mais amigo mesmo...
Gilberto Petruche - Eu tenho cliente desde o início. O mais desde o início é o 153 [número da carteirinha]. Ele se bobear, ele aparece aqui. É o único três dígitos que ainda aluga. De dois dígitos [na carteirinha] ainda tinha um até outro dia, mas ele morreu. Era o Wilson, número 11. O 153 ainda vem, tá sempre aqui, mas não é mais cliente, é tudo amigo. É muito raro, mas às vezes você abre uma carteirinha nova. Um cara de Taubaté me ligou esses dias querendo abrir carteirinha e me perguntando se alugava pra outra cidade. Perguntei: “Mas você prefere comprar?”. Porque às vezes é até mais barato comprar. Eu até preciso tirar fotos de filmes de terror para mandar para ele, mas vamos fazer. Combinei que ele vai ficar 15 dias com o filme e pagar R$ 8. Custo do envio dele, já expliquei isso. E tem muita gente que quer abrir carteirinha, que quer ter a carteirinha da Charada. Eu não tenho mais, tenho até que ir na papelaria, na gráfica, pra fazer uma carteirinha.
Tem gente que implora por carteirinha. Tem gente que vem do Paraná, gente que vem do Espírito Santo, gente que vem de outros lugares para conhecer a Charada, graças ao Rinha, que deu 8 milhões de visualizações. E agora a turma do Rinha está fazendo um longa-metragem sobre mim e, por tabela, sobre a Charada. Eu perguntei: “Vocês têm certeza?”. “Mas Gilberto, você é muito significativo, você não tem noção...”. Eu sei que tem gente que vem aqui que fica até de joelho. Mas, para mim, é a minha casa.
R7 - É marcante, eu não entrava numa videolocadora há uns 20 anos.
Gilberto Petruche - Essa visão que você está dizendo, eu, pelo menos, não tenho, porque aqui é minha casa. Eu amo isso aqui. Todos. Eu falo que são meus filhos, meus filhos em VHS, meus em DVD. Só não sou apaixonado pelos Blu-ray, que me dão um prejuízo desgraçado, mas são meus filhos também.
Quem chega aqui, é impressionante, pincipalmente nos dias de eventos. Eles amam isso aqui. É um centro cultural, né? Hoje é mais do que uma locadora. A gente dá aula de violão, faz um monte de coisa, faz shows. Parece que tem uma redoma aqui que só traz coisas boas. Cultura tem que trazer cultura. Quem não gosta de cultura não vai passar aqui.
Então, a locadora fica viva nos dias dos eventos. No dia a dia, vem gente aqui, a gente conversa, mas aluga muito pouco. Às vem gente só pra alugar VHS. Sabe aquele cara que adora o VHS, ama sentir o cheiro? Eu alugo mais VHS do que Blu-ray, por exemplo. Blu-ray não aluga nada. DVD aluga muito pouco também. A locação de filmes não paga nem a luz e o aluguel por mês. Luz e água aqui custam mais ou menos R$ 400. Locação dá um pouquinho menos, por mês. Sendo que já aluguei quase 900 fitas num dia. Hoje, para chegar a 900, eu teria que fazer um cálculo, mas é alguns anos. Mas 900 foi o pico. A média no auge era 400, 500 locações por dia.
R7 - E isso foi no começo dos anos 2000, né? Desde o começo você já tinha aquela dúvida, mas quando você percebe que se tornaria um negócio economicamente inviável?
Gilberto Petruche - Essa pergunta é interessante porque eu nunca me preocupei de ficar inviável. O que me preocupava era o seguinte: eu tenho que pagar aluguel, tenho que pagar contador, essas coisas eu tenho que pagar. Mas eu nunca me preocupei com isso para ganhar dinheiro. Então, quando entrava R$ 20 mil por mês, saía R$ 20 mil por mês. É o meu hobby, eu não bebo, não fumo, meu hobby era aqui. Eu não queria que o cliente chegasse aqui e eu respondesse que tal filme já estava alugado. Titanic eu comprei 55 cópias. Olha só o quanto eu investi. Na maioria das locadoras, os donos compravam carro, casa, porque dava dinheiro. A minha também dava dinheiro, até mais que os outros, mas eu investia tudo em filme.
Quando chega o DVD, tem um problema aqui em Sapopemba, porque ninguém tinha o DVD, era muito caro o aparelho. Então eu tinha que comprar o VHS e o DVD pra alugar só um ou outro. Começou a sair mais dinheiro do que entrar nesse período. Na maioria das locadoras, o melhor momento foi da transição do VHS para o DVD, mas para mim esse movimento demorou pelo menos um ano. E depois disso volta a alugar bem pra caramba.
Mas, sobre a pergunta, quando começa a cair, eu chutaria 2010. Começa a cair bem rápido. De repente, você começa a ir para 300, 200 filmes por dia. E tinha 20 locadoras aqui na região, logo cai para 18, 17, 16. Você sabia que a coisa ia chegar. Só que eu tinha uma arma maravilhosa na mão, que é o seguinte: só parar de comprar. Entrava R$ 20 mil, eu comprava R$ 20 mil. Entrou R$ 5.000, comprava R$ 4.000. Entrou R$ 3.000, comprava R$ 2.500. Eu tinha um acervo que se mantinha, um acervo enorme. E aí você vai comprando menos, menos, menos. Historicamente, financeiramente, economicamente, eu estava na mesma. Só que vai chegar um momento que não vai dar mais nada, praticamente mais nada.
Há nove anos atrás, o bicho tava pegando forte. Aí nosso amigo Eduardo Osmedio chega aqui e fala: “Ô, Gilberto, 21 anos da Charada, vamos fazer uma festa?”. E a gente faz um show de rock aqui, foi assim que nasceu o festival Terra em Transe. Tirei umas prateleiras, levei uns 6.000 filmes pra casa. E começamos a fazer shows. Veio o Ciro Pessoa, ex-Titãs, aqui, o Clemente dos Inocentes, o Fernando Catatau, que é um cara monstro. E isso começou em 2016, que eu lembro que a locação caiu muito e a gente estava quase para fechar. E depois vem a tal da pandemia, que não sei como a gente sobreviveu.
R7 - E nessa época você chegou a pensar em fechar?
Gilberto Petruche - Eu nunca cheguei a pensar em fechar.
R7 - Falavam para você fechar?
Gilberto Petruche - Opa, direto, hoje mesmo! Vou dar um exemplo para dizer: minha mulher não vem aqui há dez anos, ela não me ajuda mais. Ela ajudava muito, ela não ajuda mais porque ela fala uma coisa que é muito correta, por sinal: “Eu trabalho para ganhar, não para pagar”. Então ela não em aqui e ponto. Mas agora ela está mudando um pouco por causa dos vídeos no Rinha. Já me pararam no mercado, outro dia um cara me parou e ficamos 40 minutos conversando. Ela comenta: “É, você está ficando famoso, já nem posso mais ir com você”.
E muita gente fala comigo por causa dos vídeos do Rinha, e tenho milhares de comentários. Leio com o maior carinho, alguns, não todos. Sou xingado também. Eu não estou nem aí. Só um que falou: “Isso só pode ser lavagem de dinheiro”. Aí eu peguei pesado. Eu comecei a responder e xinguei o cara de tudo quanto é nome. Essa me irritou, porque eu sei o que faço para manter aberto. Mas eu parei, pensei que todo mundo ia estar lendo isso, apaguei tudo e respondi: “Rua José Antônio Fontes, 62. Venha me conhecer”. Todo mundo falou: “Olha, como o Gilberto é educado”.
Mas, voltando, de um jeito ou de outro a gente vai levando, sabe? Com muito amor e dificuldade. Por isso que eu falo, aqui é resistência. Acima de tudo, é resistência. E amor. Então nunca passou, nunca, nunca, passou na minha cabeça de fechar. Mas, em casa, todo dia, toda hora.
Tem uma história que uma família veio de São José do Rio Preto [cidade do interior paulista que fica a 440 km da capital]. O filho de 14 anos me abraçou, conhecia tudo de mim, conhecia de cinema. Ficaram aqui umas três horas. Eu perguntei: “Vocês vieram visitar algum parente, passear?”. Falaram: “Não, você não está entendendo, esse é o presente de aniversário dele, viemos para te ver e vamos voltar”. Aí cheguei em casa, contei toda essa história. E ela fala assim: “Compraram o quê?”. Outro cara me ligou quando a loja estava fechada e me disse que tinha vindo do Espírito Santo para me conhecer. Achei que era a Rua Espírito Santo, em São Caetano. Não, era de uma cidade pertinho de Vitória, no Espírito Santo mesmo. Pedi até para ele fazer um favor de ligar para minha mulher, porque ela não ia acreditar, liguei e joguei o celular na mão dele. O cara pega o celular e começa a falar como eu fosse o Tom Cruise. Enfim, chegando em casa, conto todo essa história. A pergunta? “E ele comprou muito?”. Olha, além de não comprar, ainda dei um Blu-ray para ele. “Tá vendo, por isso que não dá”, ela respondeu. Então tudo isso para responder a simples pergunta de como é. Não é fácil. Ela tem razão? Tem razão. Meus filhos não me impõem, muito pelo contrário. Eles falam “o pai ama isso e tudo bem”. Ela é mais pragmática. Hoje, com o sucesso do Rinha e agora que estão fazendo um filme comigo e deve entrar um dinheiro, ela está um pouquinho menos chata. Mas seis meses atrás, todo santo dia ela falava: “Você vai lá, em vez de ficar aqui com seu neto?”. Mas nunca pensei em fechar, mesmo quando começou a cair mais violentamente, há uns oito, nove anos, eu nunca pensei.
R7 Você se vê ficando aqui até quando?
Gilberto Petruche - No Cinemagia 2 [documentário sobre as videolocadoras de São Paulo, o Alan, que é o diretor, fez essa pergunta também. O que vai ser daqui a dez anos? Hoje eu tenho 69, mas na época tinha 68. Então, pensei, eu estarei com 78 anos. Meus filhos não querem saber daqui. Não tinha pensado nisso. Eu nunca penso no futuro, é um defeito de fabricação minha. Eu pensei e falei: “Puxa vida, não vai ter mais Charada, 78 anos, não vejo continuidade, vai ficar só a história”. Ele ficou chocado, não esperava essa resposta. Mas nem eu esperava.
Porque você soma dez. Eu vou estar aqui ainda, talvez, mas e daqui mais cinco? É complicado isso, porque, por eu não pensar no futuro, por achar que eu ainda tenho 26. Até porque eu jogo bola ainda, há 52 anos no mesmo time, o Lestinho [Lestinho F.C. é um time de futsal amador da zona leste de São Paulo]. Ali eu domino, sou goleiro. “Ah, a coisa que você mais ama é a locadora?”. Não, é a segunda. O que eu mais amo é o meu Lestinho.
R7 - Então, mesmo não pensando no futuro, daqui uns dez anos, quem sabe, você próximo aos 80, pode pensar em fechar a Charada. Você já pensou o que fará com seu acervo?
Gilberto Petruche - Boa pergunta. Não, eu não parei para pensar, mas eu tenho que começar a pensar. Tenho que ter essa consciência. Quer queira ou não a idade vai chegando, a gente sabe que tudo é finito, perdi minha irmã faz pouco tempo, a gente vai perdendo cliente. Você vai tendo uma consciência da sua finitude, né?
Eu já vi muita gente jogar fora, VHS, DVD, aparelho. E corre esse risco e é cultura. Eu tenho 7.000 mais ou menos em VHS e uns 14 mil em DVD. Corre o risco, se você não tiver cuidado, de ir para o lixo, e é cultura viva que está ali dentro. E eu nunca parei para pensar, agora com essa pergunta você me faz eu pensar nisso, eu já pensei de continuação da loja, mas não dou acervo mesmo. Mas uma coisa eu garanto, são meus filhos, isso que eu sempre falo. E filho você não deixa mesmo.
R7 - São 7.000 fitas VHS e 14 mil DVS aqui?
Gilberto Petruche - Somando tudo. Eu tenho 6.000 em VHS e DVD em casa, que eu levei para dar esse respiro aqui, tirar as prateleiras. E mais 1.500 de Blu-ray. E mais uns 3.000 vinis. CDs de música eu tenho muito também. Acredito que uns 4.000. Tenho também alguns livros raros, umas revistas raras.
Então, com esse acervo todo, eu não pensei. Essa pergunta é nova. Uma coisa eu sei: não vou abandonar meus “filhos”. Vou analisar. Mas talvez eu consiga fazer daqui o Centro Cultural Charada efetivamente. Já dou no papel, mas quero tornar efetivamente em um centro cultural, para buscar leis de incentivo cultural. E isso é uma forma de o acervo ficar mais garantido também.















