Vigiado e burocrático: como é viajar para a Coreia do Norte, o país mais fechado do mundo
Brasileiro conta ao R7 que teve cada um de seus passos monitorado por uma funcionária do governo de Kim Jong-un
Internacional|Sofia Pilagallo, do R7
Empresário por profissão, historiador por hobby e um curioso nato. Esse é o paulistano Leonardo Lopes, de 44 anos, que, em 2018, decidiu embarcar com a esposa em uma aventura, no mínimo, inusitada: viajar para a Coreia do Norte, o país mais fechado do mundo. Ele tem um blog de viagens, no qual compartilha suas várias experiências e memórias adquiridas nos seis continentes.
Ao R7, Leonardo conta ter interesse em vários períodos da história. Mas a Guerra Fria (de 1947 a 1991), conflito político-ideológico travado entre os Estados Unidos e a União Soviética e seus respectivos aliados, chama em especial a sua atenção. A Coreia do Norte apoiou a União Soviética e, até hoje, vive em um regime comunista totalitário. O país é o único com resquícios desse período histórico tão importante.
A Coreia do Norte é um país isolado do resto do mundo e onde tudo, absolutamente tudo, é controlado pelo governo autoritário do líder Kim Jong-un. Isso fica claro desde o início, segundo Leonardo, uma vez que os trâmites para viajar para o país são extremamente burocráticos.
Em primeiro lugar, o viajante precisa fechar um pacote com uma agência de turismo da China que tenha acordo com a Empresa Coreana de Viagens Internacionais (KITC, na sigla em inglês), a agência de turismo estatal norte-coreana. A partir disso, a agência alinha todos os detalhes da viagem, como opções de hotel, passeios e até mesmo o trajeto para chegar ao país. O estrangeiro precisa também emitir um visto norte-coreano, que só é entregue a ele na chegada.
Leia também
Para entrar na Coreia do Norte, é preciso primeiro pegar um avião para a China, país aliado da terra de Kim Jong-un que faz divisa com a nação comunista. De lá, o viajante escolhe se quer fazer o resto da viagem de trem ou de avião. Leonardo optou por ir de trem.
"Eu queria conhecer não só a capital Pyongyang [o destino de Leonardo], como também as cidades interioranas da Coreia do Norte. Por isso, optamos por ir de trem. Apesar de eles não permitirem que você saia do trem, é possível ver a paisagem pela janela — as casas, as pessoas e tudo mais", conta.
• Compartilhe esta notícia no WhatsApp
• Compartilhe esta notícia no Telegram
Ao chegar a Dadong, Leonardo e a esposa receberam seus vistos norte-coreanos. Os documentos foram entregues a eles pelas mãos de um funcionário da agência chinesa, juntamente com as passagens de trem para poder cruzar a fronteira. Nesse momento, o funcionário passou algumas instruções ao casal e o fez assinar uma série de documentos, nos quais os dois se comprometiam a não levar, fazer nem falar certas coisas. "Se você respeita todas as regras, você tem uma boa estada lá", enfatiza.
Logo na primeira parada após o cruzamento da fronteira, funcionários do governo norte-coreano realizam uma "inspeção geral" e analisam tudo o que o passageiro carrega consigo, inclusive celular e fotos contidas nele. Uma vez liberados, os viajantes enfrentam seis horas para chegar até a capital, onde são recebidos pelos guias turísticos previamente contratados pela agência. Eles, então, retêm os passaportes dos estrangeiros e passam a acompanhá-los 24 horas por dia.
"Tudo foi muito bem orientado pela agência, então não tivemos surpresas. Mas confesso que deu um frio na barriga", relata.
A viagem
Ao longo de uma semana, Leonardo visitou três cidades norte-coreanas: a capital, Pyongyang (onde passou a maior parte do tempo), Myohyangsan e Kaesong. Ele também esteve na Zona Desmilitarizada, faixa de terra que separa as Coreias, considerado um dos lugares mais tensos do mundo.
O paulistano conta que foi a muitos restaurantes, museus e templos durante a viagem. Entre as coisas que mais chamaram a atenção dele estão os vários monumentos e estátuas construídas em homenagem a Kim Jong-un e os líderes norte-coreanos que vieram antes dele, bem como à Juche. O termo designa uma ideologia implementada pelo líder norte-coreano que defende uma economia planificada, uma forte estrutura militar e o culto à sua personalidade.
Em Myohyangsan, Leonardo visitou a Exibição Internacional da Amizade, um grande complexo onde o regime de Kim Jong-un guarda presentes recebidos por diversos líderes desde tempos imemoriais. Segundo o brasileiro, há, ao todo, mais de 300 mil presentes diplomáticos no local, desde esculturas de marfim até cassetes.
"A guia turística ressaltou que essa não era uma prática diplomática comum no resto do mundo e falou como se os presentes tivessem sido dados em admiração a Kim Jong-un. É incrível como eles têm uma visão muito distorcida da realidade", afirma.
Leonardo compara a vida dos norte-coreanos ao filme O Show de Truman, em que o protagonista, interpretado pelo ator canadense Jim Carrey, tem uma vida aparentemente perfeita e descobre, no fim, que sua realidade não passava de uma ilusão. Ele tinha o cotidiano monitorado por câmeras e transmitido em rede nacional.
De acordo com o paulistano, os norte-coreanos acreditam em narrativas que mostram o país como um oásis, um paraíso isolado do resto do mundo e invejado pelos seus rivais. Para eles, os Estados Unidos, seu maior inimigo declarado, teriam inveja de toda a prosperidade e abundância da nação comunista.
O que o brasileiro viu, porém, não condiz com essa narrativa. Apesar dos monumentos históricos e das lindas paisagens, o país está imerso em autoritarismo, pobreza e desigualdade social — problemas que são escondidos e até negados pelos guias turísticos.
Leonardo se recorda que, certa vez, perguntou à guia turística se havia alguma questão, por menor que fosse, em que ela discordava ou não concordava totalmente com o governo. Ela, então, "se exaltou" e foi "muito enfática" ao afirmar que concordava com todas as medidas do regime e que Kim Jong-un era o "mestre" do povo.
Em outra ocasião, o paulistano estava na capital e viu uma pessoa suja e maltrapilha, que parecia estar em situação de rua ou de extrema vulnerabilidade. Ele perguntou à guia quem era aquela pessoa, mas ela entrou em negação.
"Ela dizia: 'Que pessoa? Não vi pessoa nenhuma'. Depois de muita insistência da minha parte, ela falou que poderia ser alguém com problemas mentais", conta.
Para Leonardo, o saldo da viagem foi uma experiência transformadora. Ele relata que o maior aprendizado adquirido durante a estadia foi perceber que, apesar de todas as dificuldades que o Brasil enfrenta, todos os problemas políticos, sociais e afins, o povo vive em um país livre, e a liberdade não tem preço.
Aqui, o povo tem livre acesso a notícias, pode checar informações e, por mais que os meios de comunicação adotem uma linha editorial mais alinhada à esquerda ou à direita, não existe um órgão estatal que controle o trabalho da imprensa. "Na Coreia do Norte, tudo o que eles sabem sobre o governo e sobre o mundo é controlado, manipulado e moldado nos termos de Kim Jong-un."
Kim Jong-un se reúne com ministro russo e mostra mísseis e equipamentos de guerra