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Piada sobre time 'africano' da seleção da França incita polêmica  

A dupla origem dos ídolos do futebol francês ainda repercute em um país onde 10% dos habitantes são filhos de imigrantes

Internacional|Fábio Fleury, do R7

Griezmann, Pogba e Mbappé: filhos de imigrantes conquistaram o bi mundial
Griezmann, Pogba e Mbappé: filhos de imigrantes conquistaram o bi mundial

Após a vitória francesa na final da Copa do Mundo, muitos se apressaram em celebrar a origem africana da maior parte dos jogadores (15 dos 23 convocados). O comediante sul-africano Trevor Noah foi um deles.

Em seu programa na TV norte-americana, ele afirmou que "a África ganhou a Copa". No dia seguinte, o embaixador da França nos EUA, Gérard Araud, respondeu em uma carta que 'todos são franceses'.

"A França não se refere aos seus cidadãos com base em sua raça, religião ou origem. Para nós, não existe uma identidade com hífens", dizia o texto.

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Noah respondeu à carta na edição seguinte do programa e manteve sua posição, chamando a atenção para o fato de que, mesmo com a vitória, muitos desses jogadores e, principalmente, outros franceses anônimos ainda sofrem na sociedade por causa de sua origem. "Não quero excluí-los da França, quero incluí-los na África", disse o apresentador.


Seleção 'de origem' 

A França tem atualmente cerca de 66 milhões de habitantes. Os dados oficiais mostram que aproximadamente 6 milhões são imigrantes recentes que não têm a nacionalidade francesa. Dos 60 milhões restantes, quase 7 milhões (ou 11% da população) são descentendes de imigrantes e nasceram na França, ou seja, são franceses 'de origem'.


Burocraticamente, todos os que têm passaporte francês possuem os mesmos deveres e direitos. Para o Estado, todos são cidadãos franceses, na nacionalidade. Porém, na sociedade, nas ruas, ninguém se esquece de onde eles vêm. Para o bem e para o mal, eles são 'de origem' estrangeira e assim são tratados.

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A conquista do bicampeonato mundial de futebol pela França de Mbappé, Pogba, Griezmann, Umtiti, Kanté, entre outros, pode vir a simbolizar um intenso processo de mudança no país. Filhos e netos de imigrantes, mas cada vez mais franceses.

Políticas de assimilação

Por conta de diversos séculos de história colonialista, a França já recebeu milhões de imigrantes, de diferentes nacionalidades. Como o Estado definiu que haveria uma política de assimilação, quem se enquadrava na cultura, língua e costumes franceses acabou sendo reconhecido como cidadão.

"Havia estatutos que definiam, grosso modo, quem das colônias poderia ser francês e quem não. Normalmente isso era atrelado a saber usar talheres, falar francês e adotar outros hábitos culturais franceses. Isso definiria o que seria ser 'civilizado'. A política de imigração francesa ainda parte desse princípio, que é o da assimilação", conta Antônia de Thuin, pesquisadora de literatura e cultura africanas da PUC-RJ.

A partir da assimilação de costumes, a pessoa passava a ser vista como um cidadão francês, mas no dia-a-dia, a situação dos descendentes de imigrantes ainda está em evolução. "A questão da assimilação é um problema, porque prevê que, para serem considerados franceses, os cidadãos têm de deixar todo o resto na porta. O que o Trevor Noah falou é da duplicidade de identidade", completa.

Cargos públicos

Sílvia: cara nova na política
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A brasileira Sílvia Capanema vive na França desde 2001. Foi ao país fazer seu doutorado, se casou, teve duas filhas, se tornou professora da Universidade de Paris e foi eleita para dois cargos públicos na cidade de Saint Denis, na região metropolitana da capital. É como se acumulasse as funções de vereadora e deputada estadual.

"O que importa para o Estado é que os jogadores falam a língua, cresceram na França, frequentaram as escolas de futebol na França. Eles são inteiramente franceses, mas são também franceses 'de origem', descendentes de países africanos, como Costa do Marfim, Camarões. Isso não vai alterar os direitos, mas vai ser importante na relação com a sociedade", explica Silvia.

A história da brasileira exemplifica uma nova tendência, a ascenção de imigrantes a postos importantes da sociedade. Cada vez mais, políticos vindos de outros países e descendentes de imigrantes das antigas colônias francesas estão sendo eleitos.

"A gente tem que compensar muito para ter um tratamento igual na sociedade, o olhar das pessoas mostra a diferença. Se não fosse aqui, eu jamais seria eleita. Só consegui porque Saint Denis é onde existe a maior comunidade de imigrantes, temos mais de 140 nacionalidades aqui", conta.

Dupla identidade

Para exemplificar as dificuldades com identidade, Sílvia cita o caso de Mohamed Gnabaly. Aos 33 anos, ele foi eleito prefeito de L' Île Saint-Denis pelo Partido Verde, mas passou por problemas até se estabelecer como francês de origem africana.

"A questão da origem é muito importante pela identidade, para processos individuais e coletivos. Esse prefeito relatou que quando ia ao Senegal, terra dos pais dele, o identificavam como francês. Na França, é visto antes de tudo como senegalês, muçulmano. Quando jovem, isso causou problemas, ele não sabia seu lugar", conta.

Futuro da França

Além desse início de presença na política e de terem tomado conta dos esportes franceses (Sílvia cita o exemplo do judoca Teddy Riner, bicampeão olímpico nascido em Guadalupe), a brasileira acredita que o próprio futuro do país será influenciado pelos filhos de imigrantes.

"Essa nova geração vai mudar muito a França, já está modificando. No Brasil a gente tem uma imagem enferrujada da França, o país tem uma presença enorme de africanos, é um novo país. Essas pessoas vão rejuvenescer um país que corre o risco de envelhecer. Não é só nos esportes, é na literatura, na culinária, em tudo", comenta.

O importante é evitar que atos como vencer a Copa do Mundo ou salvar uma criança escalando um prédio sejam as atitudes exigidas para reconhecer a cidadania dos imigrantes. "Exigir que todos sejam heróis para serem franceses é muito errado", finaliza Sílvia.

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