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A história do delegado Fleury, algoz da ditadura militar

Fleury foi do DOPS e se destacou por seu método de investigação que aterrorizava, sem distinção, todos os investigados por ele

Arquivo Vivo|Percival de Souza e Percival de Souza


Quarenta anos se passaram, o marco não exatamente histórico é registrado no último 1º de maio. No cemitério São Paulo, rua Cardeal Arco Verde, escreveram nas paredes, com letras grandes: “Fleury está aqui”.

Estava sepultado ali Sérgio Fernando Paranhos Fleury, o ícone da repressão política, nome que provocava medo e pavor, tanto entre criminosos comuns como naqueles que decidiram se armar e lutar contra o regime militar. A sangue frio, ou a sangue quente, essa história foi escrita no início dos anos setenta, com engajamentos em organizações clandestinas, múltiplas, e a criação de uma estrutura repressiva ímpar, dentro da qual os fins justificavam todos os meios.

Quando me avisaram, telefonema na madrugada de 1º de maio de 1979, que Fleury estava morto, minha primeira reação foi: quem o matou? A resposta foi de frustrante: embriagado, ele caiu no mar ao pular de um barco para outro, na Ilha Bela, litoral de São Paulo, e quando um marinheiro mergulhou e o trouxe de volta à tona, ele já estava nos estertores da morte.

A história da guerra revolucionária está contada em vários livros, entre os quais se destaca uma série do jornalista de obras de Elio Gaspari. O meu Autópsia do Medo mereceu lugar nessa estante, sendo adotado em várias faculdades e tema de uma tese de doutorado. Preferi o estilo de me fixar rigorosamente na narrativa dos fatos, ao contrário de alguns que preferiram construir uma literatura engajada, catártica pela derrota no violento combate entre brasileiros. Muitas vidas foram perdidas na luta por um sonho: derrubar o sistema dos militares, mesmo no terreno dominado por eles, com grupos impetuosos, mas reduzidos. O fracasso era pragmaticamente previsível, mas sonhos alimentam ilusões.


Fleury personificava todas as iras contra o que se convencionou chamar “sistema”. Ele era do DOPS, Departamento de Ordem Política e Social, que vigiava, espionava, bisbilhotava e atacava os insatisfeitos, classificados como “subversivos”. O DOPS era vinculado umbilicalmente ao DOI-CODI, o Departamento de Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, órgão do Exército.

Funcionava na rua Tutóia, fundos do 36º Distrito Policial, bairro do Paraíso, onde apesar do nome houve dias infernais. O DOPS, no Largo general Osório, recrutou na Polícia Civil, à qual pertencia, os policiais que mais se destacavam na busca de criminosos comuns, principalmente ladrões. Foram selecionados na antiga Delegacia de Roubos do Departamento Estadual de Investigações Criminais.


Foi onde Fleury se destacou. Seu estilo: usar os mesmos métodos empregados contra criminosos comuns para ir atrás dos acusados de crimes políticos, entre eles muitos tidos como intelectuais, sem estabelecer diferença alguma entre uns e outros. O resultado foi terrível para os caçados, como sinistros também foram os métodos utilizados. Fleury construiu a imagem de carrasco-mor, ao mesmo tempo venerado pelos (muitos) que defendiam o regime militar. Sua carreira na Polícia foi meteórica: em apenas oito anos, foi de delegado de quinta classe a delegado de classe especial, ao lado do delegado Romeu Tuma, que primeiro chefiou o Serviço Secreto e depois foi diretor do próprio DOPS.


Fleury cultivou a fama de não deixar nenhum caso praticado por criminosos comuns sem solução. Prendia primeiro, verificava depois, e a estrutura de então na Polícia, onde ele foi gestado, legitimava a tortura e a violência. Só no Deic havia uma média de 700 presos/dia para “averiguações”, isto é, encarcerados para se saber se teriam algo para revelar. O pau-de-arara era instrumento de “trabalho”.


Choques também. Cenas indescritíveis aconteciam no cárcere para se chegar ao limite da resistência física e confessar. Além dessa carceragem, o Deic tinha à sua disposição outros 700 presos “averiguacionais” no Presídio Tiradentes, na avenida do mesmo nome (hoje extinto) e mais 600 no Presídio do Hipódromo, também nome da rua onde ficava. Tudo isso junto significava dois mil presos ao todo, sem nenhuma culpa formalizada, à disposição dos algozes encarregados de “averiguá-los”. No terceiro andar do Deic, formavam-se filas de presos esperando a vez de serem torturados.

A MORTE DE MARIGHELLA

Os mesmos métodos foram adotados na repressão política. Foi assim que não escaparam de suas garras o ex-capitão Carlos Lamarca, o líder Carlos Marighella, o cabeça pensante Joaquim Câmara Ferreira e o sucessor de Lamarca, morto no sertão da Bahia, Onofre Pinto. Nomes de destaque entre tantos e tantos. Para chegar a Marighella, Fleury invadiu o convento dos dominicanos, na rua Caiubi, bairro das Perdizes, e levou vários padres simpatizantes à causa carbonária para o DOPS. Lá, encarregou um delegado, Raul Ferreira, de vestir-se de padre e interrogá-los, como num confessionário. Um deles contou sobre um encontro marcado na alameda Casa Branca. Teve que ir para o bairro dos jardins dirigindo um fusca, com pneus quase murchos, para não poder acelerar.

Marighella entrou no carro e foi fuzilado. Fleury estava em campana no local, abraçado com uma moça, como se fossem namorados. Ela, Estela Borges Morato, investigadora do DOPS, morreu com um tiro na cabeça. Um dentista que passava de carro pela alameda na hora dos tiros, também foi atingido e morto. O delegado Rubens Cardozo Tucunduva, do DOPS, recebeu um tiro nas nádegas. O ferimento provocou uma infecção fatal.

Essa história real é difícil de ser admitida por alguns, mas incontestável para quem esteve no local dos fatos naquela noite: vi o corpo de Marighella dentro do fusca, contorcido, e todo o aparato policial no local, inclusive um bando de jovens ligados ao CCC, o Comando de Caça aos Comunistas, uma espécie de milícia política da época. Eles me prenderam e levaram, à presença de Fleury, que reagiu com fúria: “esse é repórter, seu cretino!”. O mauricinho me perguntou porque eu não havia dito. Respondi: “porque você não me perguntou nada”. 

Para o romance que seria revelado somente no livro que eu iria escrever, fui conversar com a amante dele, uma advogada, que me recebeu assim: “eu sabia que um dia você iria me procurar”. E me contou que havia guardado num cofre de banco um envelope para ser entregue a mim, somente depois que ela morresse. Lá dentro, estavam apaixonadas cartas de amor de Fleury para Leonora Rodrigues de Oliveira. Incrível: a advogada teve vários irmãos, militantes de esquerda, presos por Fleury. Estranhei. Ela me desafiou: “você não sabe escrever sobre o amor”.

A morte súbita de Fleury foi frustrante para mim. O feriado de primeiro de maio de 1979 caiu numa terça-feira. Seria prolongado, de sábado a terça. Conversei com ele na sexta. A revista Playboy me pediu para fazer uma longa entrevista com o delegado. Não estava disposto a isso, e pedi um preço alto pelo trabalho. A revista topou. Na sexta, sala dele, como diretor do DEIC, quinto andar do prédio do Palácio da Polícia, fiz o pedido para uma longa conversa, sem interrupções. Ele me perguntou quem iria pagar o uísque, surpreendentemente entusiasmado com a idéia. Contou-me que havia recebido uma carta de um clube inglês, na qual era insultado e desafiado para um duelo mortal. Nunca mais veria essa carta.

Saí contente do prédio. Fleury estava feliz. Tinha acabado de comprar um barco e iria aproveitar o feriadão para navegar. Tudo isso veio à minha memória naquele telefonema da madrugada. Fleury morto... por que isso foi acontecer justamente agora, antes da entrevista? Não poderia ter sido um pouco mais adiante? Decidi, anos depois, ser o autor de uma difícil biografia. Descobri muita coisa. Mas muitas delas foram para o túmulo.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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