— Eu quero Justiça! O brado de indignação pulsa nos corações e mentes diante de casos que ferem a alma e nela deixam cicatrizes profundas. As pessoas atingidas cobram providências do Estado, sentindo-se abandonadas e desprotegidas, esperando que os olhos do Poder se voltem para elas. Clamam por um bálsamo, um auxílio, uma ajuda, uma providência, não querem continuar a ser apenas um número a mais nas estatísticas.
— Eu quero Justiça! É o grito, o choro, que ouvimos quase todos os dias no programa Cidade Alerta, nosso programa na Record TV, que vai aos lugares aonde ninguém vai, escuta aqueles que ninguém se preocupa em ouvir e mostra aquilo que ninguém está a fim de mostrar.
— Eu quero Justiça! O grito dos inocentes por tabela, inconformados com barbaridades com os nomes de assassinatos, espancamentos, estupros, agressões violentíssimas, roubos, pancadarias. A tal sensação de insegurança, como dizem os intérpretes platônicos, que não sabem interpretar o exato significado das profundas dores alheias.
No equivalente ao nosso Palácio da Justiça, na cidade do Porto, em Portugal, vi uma obra que me deixou admirado, porque a estátua estava ali a representar exatamente o que você acaba de ler.
A escultura impressiona: deusa grega da Justiça, esta Têmis é singularmente diferente das outras na representação: ao contrário das demais estátuas, não possui venda nos olhos e as correntes da sustentação da balança estão enroladas, como se nada quisessem pesar.
O que tem a ver essa concepção esculturalmente artística no Porto, maravilhosa cidade, com a nossa realidade? Tudo. A simbologia, oriunda da potência filosófica, é profunda. Ou seja: ela pode não querer ver a quem se destina, exatamente para contemplar a todos, sem nenhuma distinção, estabelecendo portanto a igualdade. Sabendo do que se trata uma causa em questão, decide o que é certo e justo, numa sabedoria digna de Salomão, o terceiro rei dos judeus. Moralmente excelente, eticamente perfeito. Para absolver e, se for o caso, condenar: é possível, ao ser pesado na balança, que se considere alguém em falta, devedor, como está admitido no Antigo Testamento, livro de Daniel, 5:27.
A espada representa a força para combater a injustiça, o mais forte sobrepujando o mais fraco, não sendo estúpida ao representar a força sobre o direito, que por outro lado não pode ser uma palavra sem significado, se o direito não for suficientemente forte aos ser aplicado. Assim, a Justiça é distribuída.
De modo geral, as pessoas não sabem o que significa a deusa de Atenas. Filha de Urano (deus dos céus) e Gaia (deus da terra), conselheira de Zeus, o maior no Olimpo, criadora do oráculo de Delfos (sempre consultado), ela é uma síntese de definição moral e verdadeira, agindo com absoluta equidade e humanidade, muito além das paixões humanas.
Ser juiz, portanto, é decidir com plena consciência, a rigor um lampejo divino. Pelo grande número de deuses então existentes, o apóstolo Paulo se dirigiu aos atenienses, no Areópago, aproveitando-se de um espaço vazio, em monumento dedicado ao “deus desconhecido”, para anunciar a eles o Deus verdadeiro, como está escrito no livro de Atos, Novo Testamento, 17:23.
Os objetivos de Têmis ficam consolidados na crença, ou esperança, de manter a ordem social. O bem comum. O respeito. A dignidade. A convivência em harmonia. O que pode ser feito e o que não pode.
MITO E REALIDADE
A essa altura, podemos raciocinar, filosófica ou factualmente, se o mito de Têmis tem ajuste com a realidade. Uma mera ficção, poderão dizer alguns, ignorando Platão entre outros. Uma narrativa condizente com os dias atuais, pensarão outros.
Cabe a você colocar os pesos na balança e decidir. A Justiça deve usar venda ou não? Todos são iguais perante a lei, diz a vendada. Sou imparcial. Quero olhar muito bem a quem estou me dirigindo. Sou justa sem olhar a quem, argumenta a vendada. Com venda, serei cega, retruca a Têmis com os olhos bem abertos.
Aqui entra a vox populi, a voz do povo, que se indigna, e não se resigna, ao ver o caso de alguém que deveria estar preso mas continua solto; um impune que deveria ser punido; um ser repugnante que comete barbaridades e continua livre; um artífice do mal que espalha malefícios previsíveis; uma legislação tosca que é proveta dos cultores do Direito que se dizem “escravos da lei”, abominável heresia jurídica; uma Justiça, única no mundo, como a nossa, que, com medo de errar, mantém nada menos do que quatro instâncias, os degraus na distribuição da Justiça, consolidando o que chamam de “trânsito em julgado”, como se pudesse existir uma Corte, superior, que torne inúteis todas as demais instâncias, principalmente a primeira.
Com venda ou sem venda, Têmis contemporânea sente no ar o aroma nada suave das decisões estapafúrdias. Pálidos exemplos: quem acusa, sendo o único com competência para propor uma ação penal, compete ostensivamente com a Têmis togada; ambos ficam com o pé atrás em relação à Polícia, embora seja esta que lhes ofereça os pratos feitos para a existência de ações penais resultantes em processos; todos esses níveis de autoridade possuem a mesma formação acadêmica em Direito, mas fazem interpretações díspares sobre os fatos; marginais, perigosos até, são colocados em liberdade sob o pretexto de que possuem “residência fixa”, embora nunca possam ser encontrados num mesmo lugar; libera-se do estabelecimento penal alegando-se que possuem “bom comportamento”, como se isso fosse uma virtude, e não um dever.
A lista é infinita. Você pode completá-la como entender melhor. Eu, continuo quase todo dia a ouvir o grito “quero justiça”. Na redação da Record TV, vemos que nosso espaço é o único em que se pode bater, esgotadas todas as tentativas institucionais.
Temos mais duas observações a fazer, referentes à ilustre senhora Têmis. Ambas estão em Brasília. São significativas.
A primeira está à entrada do Supremo Tribunal Federal, nossa mais alta Corte de Justiça. Decide por último, e sendo assim pode errar também por último, como já disse nosso jurista maior, Ruy Barbosa. É dona do “trânsito em julgado”, o que permite protelar, ou procrastinar, muitas causas, embora custe muito caro bater à sua porta. De baixo para cima, em todos os níveis, dona Têmis caminha em câmara lenta. O povo brasileiro adora demandas e entope os tribunais de processos, muitos sem pé nem cabeça.
Mas a dama Têmis está lá, bem em frente ao STF. É completamente diferente da Têmis portuguesa, no Porto: está sentada, não abre mão da venda, mas prefere manter a espada sobre o colo. É uma obra do escultor mineiro Alfredo Ceschiatti, que estudou com Niemeyer, o grande mestre arquitetônico do Distrito Federal. A espada no colo vem a ser uma atitude após uma missão ser considerada cumprida e que prescinde da balança. É feita de um bloco monolítico com 3,3 metros de altura e 1,48 metro de largura. Sentada, é estável, superior, representa exatamente o Supremo.
Por fim, o prédio do Ministério da Justiça. À sua entrada, está suspensa uma fonte com água jorrando abundante e ininterruptamente. Uma fonte que não para, água sem falta para saciar os que dela sentem sede.
— Eu quero justiça!
Vou tentar explicar aos pedintes do Cidade Alerta, que não conseguem entender o que alguns pretensos iluminados, mesmo em trevas, pretendem saber.