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A madrasta do assassino Gil Rugai me telefonou antes de morrer

Crime famoso aconteceu em 2004, em São Paulo, e demorou muito tempo para colocar o culpado atrás das grades

Arquivo Vivo|Percival de Souza

Gil Rugai no dia em que se apresentou ao Deic, 2014
Gil Rugai no dia em que se apresentou ao Deic, 2014

Dois dias antes de morrer, a madrasta de Gil Rugai me telefonou. Gentil, explicou que gostaria que eu gravasse um vídeo publicitário, para uma empresa. Tive dúvidas de que isso fosse ético, profissionalmente, e pedi para pensar sobre o convite durante o fim de semana, que eu passaria fora da Capital. De fato, refleti e concluí que não haveria empecilho. Era uma sexta-feira.

Na segunda-feira, procurei o nome dela, Alessandra Troitino, na minha agenda. Foi aí que percebi: era o nome da mulher assassinada a tiros, justamente no final de semana, junto com o marido, o publicitário Luís Rugai. A proposta que ele me havia feito era interessante. Eu diria que sim. Suspirei fundo e passei a ver os detalhes do caso, que seria o grande assunto do telejornal Cidade Alerta.

Os dois crimes foram praticados na casa do casal, na rua Atibaia, Perdizes. Alessandra foi encontrada de shortinho e sandálias. Luís, dentro de um quartinho, ao lado da sala da TV. Pela posição dos corpos, foi possível perceber que Alessandra foi surpreendida. Luís ouviu o barulho dos tiros e, pressentindo a morte, tentou se esconder. A porta foi derrubada a pontapés.

No início das investigações, logo se notou que não havia sinais de arrombamento nem na porta ou nas janelas da casa. Quem entrou, portanto, teria alguma intimidade com o casal. Aos poucos, o círculo das primeiras suspeitas foi se fechando em torno de Gil, filho de Luís, separado da primeira mulher. Alessandra era a madrasta. Gil vivia com a mãe, numa casa no Pacaembu.


Como eu já havia percebido quando me telefonou, Alessandra tomava conta dos negócios da empresa que administrava para o marido. Como sabia que seriam verificados seus últimos contatos telefônicos, fui ao Departamento de Homicídios contar por que havia sido feita uma ligação para mim. E, claro, saber como andavam as investigações.

Soube, então, das primeiras desconfianças policiais sobre Gil Rugai. Que ficaram muito fortes quando se descobriu que Gil e o pai mantinham uma conta bancária conjunta e Alessandra, a madrasta, havia descoberto um desfalque. Foi ao banco e impediu que Gil pudesse continuar movimentando a conta. Foi o estopim para o que aconteceu na noite de 28 de março de 2004.


Gil sempre negou a autoria dos assassinatos. Ele tem um jeito taciturno, misterioso, gostava de andar com uma jaqueta preta, com a qual apareceu à porta da casa do pai e da madrasta, na noite sinistra, com ares de que fosse a pessoa mais surpresa do mundo. Sua vida pessoal apontava para um perfil diferenciado, já que passou uma boa parte de seu tempo estudando num seminário católico, pretendendo ordenar-se padre. Tinha um preceptor, pároco de uma igreja na avenida doutor Arnaldo, que fez questão de prestar depoimentos favoráveis a ele, rejeitando a hipótese de Gil ter abandonando as convicções religiosas para tornar-se seguidor de Lúcifer.

É estranha a sensação de você ter conversado com uma pessoa dias antes de ela ser cravejada de balas. Não cheguei e conhecer Alessandra pessoalmente, mas ao telefone ela mostrou-se simpática e muito interessada no meu trabalho. Fiquei, assim, com muita vontade que o assassinato fosse elucidado o mais rapidamente possível.


Gil ficou provisoriamente preso numa delegacia da alameda Glete, a 77ª, onde de posse das primeiras constatações periciais, a Polícia foi à cela de Gil fazer um exame nas suas pernas, verificando a existência de uma lesão na direita. A porta do quartinho onde Luís tentou se esconder foi arrancada e levada para o Instituto de Criminalística. Só entendi o significado disso dias depois: na porta do lugar onde Luís tentou escapar da morte, foi encontrada a marca de um pé, considerada compatível com um dos sapatos de Gil Rugai, apreendido. E a lesão na perna seria consequência do impacto dos chutes que ele teria dado para derrubar a porta.

A casa onde aconteceu o crime
A casa onde aconteceu o crime

A promotora do caso, Mildred Gonzalez, foi minuciosa no seu trabalho. Acompanhou tudo de perto, assistiu à reconstituição, conversou longamente com os peritos e um vigia noturno, que assegurava ter visto Gil Rugai entrando na casa porque já o conhecia e podia afirmar isso com convicção, coisa que a defesa de Gil tentou neutralizar.

Mas os planos da promotora Mildred para fazer um júri contundente ruíram com as artimanhas imprevisíveis do Cupido. Durante a instrução do processo, ela e o juiz do caso se apaixonaram e passaram a se relacionar. Mildred entendeu que seria melhor afastar-se do julgamento, embora a relação dela com o juiz não pudesse configurar eticamente uma suspeição. No dia do julgamento, ela assistiu da plateia o que se passava no plenário. Chorou, solitária, sabendo intimamente que sua performance seria melhor do que a do colega designado para substitui-la. Muito digna, a considerada Mildred.

Mesmo assim, Gil Rugai foi condenado a 33 anos e 9 meses de prisão. “Extremamente perigoso”, destacou o juiz Adilson Simone. De nada adiantou a estratégia dos defensores (três) em escrever bilhetinhos para os jurados lerem “Gil é inocente”, num contraponto emocional e não técnico diante das provas exibidas pela promotoria. Pretendiam que valessem mais os bilhetes e não as provas. Tudo bem que o júri seja um teatro, mas assim já é demais. Os defensores se gabaram de ter “vencido”, abraçando-se enigmaticamente ao final dos debates, como se comemorassem algo que não tinha nenhuma razão de ser.

A arma do crime não fora encontrada. Mais duas evidências viriam à tona. Após a descoberta do desfalque na casa do pai e da madrasta, Gil montou um escritório, nos jardins, na mesma área de atuação do pai. Foi para lá, depois do crime, trocou as roupas que vestia (presume-se que estivessem manchadas de sangue) e levou-as para uma lavanderia, o que foi considerado altamente suspeito pela Polícia.

Muito tempo depois, nesse prédio onde Gil tinha escritório concorrente ao do pai, numa limpeza para manutenção dos elevadores, foi encontrado, bem no fundo do poço, um revólver. O zelador levou a arma para a delegacia do bairro, a 78ª. A delegada Elisabete Sato, então titular, quis saber quais eram as pessoas que ocupavam os apartamentos. Logo descobriu que Gil Rugai era uma delas. A arma foi mandada para perícia. Era o revólver usado para os assassinatos na rua Atibaia. Cerco fechado.

Rugai, dentro do camburão, se entregou à polícia em 2004
Rugai, dentro do camburão, se entregou à polícia em 2004

Quase 34 anos de prisão e inicialmente solto. Mistério judicial esquisito, num país que é um dos campeões mundiais de homicídios — média de 60 mil a cada ano. Esquisito também num país repleto de “juristas”, “constitucionalistas”, “técnicos” e “especialistas”, um assassino condenado a longos anos de prisão sair pela porta da frente do tribunal como se nada tivesse acontecido. Um estímulo para matanças à brasileira. Ah! A Constituição brasileira diz em seu artigo 5º, parágrafo 38, inciso “c”, que na instituição do júri é reconhecida — ipsis litteris — “a soberania dos veredictos”. Quer dizer: o júri é soberano. Até certo ponto, convenhamos. Soberania mais do que relativa quando se pode “recorrer em liberdade”. Outrora, bom lembrar, quando o réu era pronunciado (a decisão de mandá-lo a júri popular) já ficava automaticamente preso. Hoje, o condenado fica automaticamente solto. No país das matanças sem fim, isso é ridículo, grotesco e temerário. A vida humana, não custa lembrar, é o bem mais precioso que existe. E o assassinato é a expressão máxima da violência. Não cabe nenhuma réplica aqui.

Nesse cenário em que o que está na lei não está nas ruas e vice-versa, Gil andou solto por uns bons tempos. A liberdade foi revogada quando foi visto na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, aquela da boate Kiss (242 mortos num incêndio em 2013), onde pretendia fazer um vestibular, retirando-se de São Paulo sem autorização judicial. O que teria demais viajar para os pampas depois de matar o próprio pai e a madrasta? Nessa ausência de regras e normas, a anomia, o prefeito de Santa Maria se tornou secretário de Segurança Pública dos gaúchos. Parece mais uma brincadeira de mau gosto, mas não é.

Gil Rugai, para permanecer solto, bateu em várias portas: Tribunal de Justiça estadual, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal. O deboche jurídico-social acabou. Agora, ele está preso em Tremembé, no Vale do Paraíba, em ilustres companhias com currículos criminais igualmente sinistros, atestados inequívocos de periculosidade.

Alessandra Troitino: cheguei a pegar o telefone para ligar para ela e responder afirmativamente à sua proposta. Era tarde demais. Um mistério a mais para que eu decifre na minha vida profissional: como pode um futuro teólogo tornar-se assassino? Por enquanto, não sei responder.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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