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Carlos Heitor Cony e o fantasma dos ossos de Dana de Teffé

Arquivo Vivo|Percival de Souza

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danateffe-arquivo-vivo.jpg Reprodução

Por Percival de Souza

O jornalista e escritor Carlos Heitor Cony partiu, deixou vaga a sua cadeira na Academia Brasileira de Letras e em branco o espaço das saborosas crônicas que escrevia na Folha de S. Paulo. Se literatura é o espetáculo das palavras, e a crônica um veículo para a indignação, conforme ele dizia. Cony, bom de texto, ganhou três Jabuti, da Câmara Brasileiro do Livro, e o prêmio Machado de Assis, o fundador da Academia. O tom da escrita expressava angústias existenciais, apreciada entre os devotos de Camus e Sartre. Particularmente, porém, sempre fiquei intrigado com a sua obsessão, mencionada ininterruptamente nas crônicas, pelo encontro dos ossos de Dana de Teffé, dos quais vivia cobrando a localização. Onde estariam?


De fato, tais ossos nunca foram encontrados. Mistério que envolve um assassinato, cujo autor seria um homem conhecido como “advogado do diabo”, isso bem antes do filme com o talentoso Al Pacino. O advogado Leopoldo Heitor, que teve infarto fulminante aos 78 anos, foi advogado de Dana, uma milionária tcheca casada com o diplomata brasileiro Manuel de Teffé, do qual separou-se. Dana contratou Heitor, no Rio de Janeiro, para o processo, amigável, e o nomeou seu procurador, para administração dos bens. Ela desapareceu logo em seguida. Heitor vendeu imóveis e jóias e durante um curto espaço de cinco meses, apossando-se de todos os bens. Nasceu daí a suspeita de que ele seria o autor do sumiço, ou, pior ainda, do assassinato da mulher. Cony passou a clamar nas crônicas: “onde estão os ossos de Dana de Teffé”?

Corriam os anos sessenta. O súbito desaparecimento de Dana coincidia com a nova vida de ostentação que Heitor passou a exibir. Enigmática a súbita saída de Dana de Teffé do circuito do alto society carioca. Teve que se explicar na Polícia, já que seus contatos com ela eram sabidamente frequentes. Alguns diziam até que seriam amantes.


As explicações de Heitor não foram nada convincentes. Ao longo de depoimentos, interrogatórios, indiciamento e julgamentos, contou três versões diferentes. Precisava dizer alguma coisa, já que surgiram provas de Dana ter sido vista pela última vez entrando no carro de Heitor.

A primeira delas, teatral, era de difícil sustentação: a caminho de São Paulo, em plena Dutra, ele foi interceptado e Dana sequestrada por “espiões comunistas”. Muito difícil de acreditar. A partir da motivação da viagem: segundo Heitor, Dana teria um encontro em São Paulo com o representante para a América Latina das máquinas de escrever Olivetti. Aliás, bem antes do computador, era a favorita para escrever as minhas matérias. Tenho uma em meu escritório. A Olivetti informou que nunca se cogitou de uma tratativa desse tipo. A história da espionagem também não prosperou. Processado por autoria de latrocínio, recebeu uma primeira condenação de 35 anos de prisão. Mas, na técnica jurídica, não se poderia classificar o que teria acontecido como latrocínio, mesmo porque a venda dos valiosos bens de Dana somente aconteceu após o desaparecimento. Ou mesmo assassinato.


Leopoldo Heitor conseguiu a anulação desse julgamento, por juízo singular, e o caso foi transferido para o Tribunal do Júri. Apresentou, então, a segunda versão. Não havia mais espião comunista algum. Heitor disse que seguia pela rodovia quando o carro teve um problema mecânico e ele foi assaltado por criminosos que atiraram em Dana. Transtornado, disse, retornou ao Rio e foi para a cidade de Rio Claro (não confundir com a Rio Claro paulista), onde — com receio de ser injustamente acusado de assassinato — teria enterrado o corpo da mulher num sítio de sua propriedade, com a ajuda do caseiro. Diante dessa versão, que ele também mudaria, a Polícia carioca sequestrou-o e foi para Rio Claro, vasculhando todas as dependências do sítio. O caseiro Chico disse que Heitor havia mesmo enterrado o corpo por ali. Buscas e mais buscas, buracos e mais buracos cavados, e nada. A euforia tomou conta dos policiais quando alguns ossos foram encontrados. Mas, logo constatou-se, eram de cavalo.

O jovem Carlos Cony, nos anos 60
O jovem Carlos Cony, nos anos 60

A partir daí, Heitor passou a clamar pelo encontro dos ossos de Dana, provocando a pergunta insistente de Cony. Num novo julgamento, pelo júri popular, Heitor foi absolvido. O clamor pelos ossos invocava a tese de não existir crime sem cadáver, predominante no Brasil por muitos anos, antes — por exemplo — dos casos de Elisa Samúdio, trucidada a mando do ex-goleiro Bruno, em Minas Gerais, e o advogado Claudio Batista, o CB, assassinado em Vitória (ES), tendo o corpo dissolvido numa banheira de ácido a seguir. Ou seja: existem crimes sem cadáver. A promotoria não se conformou, recorreu, sendo marcado um terceiro julgamento. Seria o último. Este, eu assisti. Antes, entrevistei-o numa sala de quartel da Polícia Militar em Niterói, RJ, onde estava preventivamente recolhido, em prisão especial. Naqueles tempos, quando o réu era pronunciado, isto é, havia decisão para ele ser submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, já era automaticamente preso. Hoje, mata-se e fica solto e, se condenado, ainda sai do Tribunal em liberdade, porque também pode recorrer leve e solto. Um escárnio.


No quartel, cara a cara com Heitor, ele se revelou falante, bom de argumentação. Loquaz, fazendo de tudo para parecer convincente mesmo contando histórias inverossímeis. Surgia, então, a terceira versão. Dana, que falava seis idiomas, teria sido levada por espiões nazistas em São Paulo, convencida por um deles que a mãe, que ela julgava morta, estaria viva na Europa, para onde ela, emocionada, teria viajado às pressas para encontrá-la. Seria essa a motivação de passar a ele a procuração para vender todos os bens.

Heitor sustentou isso, numa entrevista que fiz para o Jornal da Tarde, sem titubear, fazendo de tudo para que eu acreditasse nele. Se foi assim, perguntei, por que você não contou isso logo de início? A resposta veio com sofismas sobre teses psicológicas de reações emocionais, receio de ser acusado de alguma coisa... Não conseguiu responder algo plausível sobre o que ele mesmo achava de ter vendido uma fortuna e Dana nunca mais ter dado sinal de vida, indiferente à perda do enorme patrimônio. Insistiu num vago amor pela mãe.

Chegou o dia do terceiro julgamento. Rio Claro, cidadezinha onde, deduzi, aconteceram somente duas coisas importantes: ali nasceu o poeta Fagundes Varela e Leopoldo Heitor foi acusado de matar Dana de Teffé. Nem mesmo Cony, sempre cobrando o encontro dos ossos, apareceu por lá.

O palco do julgamento foi a igreja local. Heitor fez uma parte da sua própria defesa. Tinha uma voz possante, sabia arrebatar e comover. Convenceu os jurados de que, caso cedessem aos argumentos da acusação, provocariam outro terrível erro judiciário. Comparou-se aos irmãos Naves, presos e torturados para confessar um assassinato, após também um desaparecimento, amargaram anos de cárcere numa condenação de 25 anos, em 1937, fato ocorrido em Araguari (MG). A “vítima” do crime que não acontecera apareceu viva doze anos depois. Heitor foi eloquente, retumbante, insistindo nas palavras: Araguari, Araguari...os Naves...Dana...

O salão estava lotado. Na primeira fileira, a esposa do juiz que presidia a sessão, começou a chorar. O juiz precisou interromper o julgamento por quinze minutos, porque mais gente chorava com a mulher dele. No intervalo, Heitor pediu licença ao juiz para mandar distribuir aos jurados “um franguinho para o almoço”. Deferido. Pensei: é previsível no resultado do julgamento. Não foi como eu esperava. A absolvição veio por apertados 4 votos contra três.

O tempo que passa é a verdade que foge. Os ossos de Dana de Teffé nunca foram encontrados, para frustração de Cony, que despejava angústia em suas crônicas. Encontrei-o, certa vez, na redação de Fatos e Fotos, de Adolfo Bloch, para a qual fiz algumas matérias. "E os ossos de Dana de Teffé?" — perguntei. “Bem que você poderia me ajudar a encontrá-los”, respondeu. Como disse isso em tom bem sério, fiquei quieto.

O fantasma dos ossos de Dana acompanhou Cony até o fim da vida.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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