Carta de Henry Borel no Dia das Mães
Arquivo Vivo|Percival de Souza, da Record TV
Oi, mãe Monique. Consegui ler sua cartinha, não me pergunte como, no dia em que completaria 5 anos de vida, na qual a senhora contou que pretendia fazer uma festinha com tipos de doce que eu mais gostava. Fiquei contente, embora não possa saboreá-los mais, e resolvi fazer a minha carta, endereçada para a senhora, agora que se aproxima o Dia das Mães.
Reparei que a senhora está escrevendo bastante, com uma sucessão de cartas (aliás, bem escritas) nas quais fala quais fala muito sobre papai e do tio Jairinho, e bem pouco sobre mim. Não entendi direito a motivação de tantas cartas, porque até onde sei o objetivo delas não era chegar aos correios e sim, de maneira indireta, tentar contar uma nova história, que fosse aceitável para a polícia.
De qualquer moldo, este Dia das Mães transformou-se no meu dia de reflexão. Se estivesse vivo, gostaria de abraçá-la, dar-lhe um montão de beijos e desejar felicidades. Agora, porém, aprendi – precocemente - que bem-aventurança quer dizer felicidade, e que no seu famoso Sermão da Motanha, Jesus listou oito delas, ali num ponto elevado nas proximidades do Mar da Galileia, revelando para que tipo de pessoas a entrada no Reino dos Céus está garantida. Logo após (Mateus 19:14), contou que esta é uma das prerrogativas dos pequeninos, isto é, as crianças. Sendo assim, e é, estou bem acomodado.
Fico pensando em tudo que aconteceu durante minha curta vida, minhas agonias e minha morte. Lembro-me vagamente de um livro que falava de uma carta misteriosa, escrita pelo próprio Deus, endereçada a um pai que tivera a filha de seis anos, Missy, brutalmente assassinada, e a polícia não conseguia encontrar o corpo. Mackenzie Philipps, este pai, forte personagem do livro “A Cabana”, recebe a carta com um convite: dirigir-se a uma cabana numa floresta, exatamente onde tudo tinha acontecido. William Young, o autor do livro, narra então o surpreendente encontro de Deus com o pai. Um best-seller.
Missy, personagem, e eu, também personagem, estamos juntos. Ela, vítima de um psicopata atraído por meninas; eu, espancado até morrer por um homem que sentia prazer ao bater violentamente em crianças. Histórias quase semelhantes.
Pois é, mamãe. Quando nos mudamos daquela casa simples em Bangu para um apartamento chique na Barra da Tijuca, não me importei muito com a cobertura e sim com o que teria de melhor para brincar e novos amiguinhos. Quanto ao tio Jairinho, também não entendo porque você trocou papai por ele, mas esta é um a questão exclusivamente sua, como eu tentaria compreender. Mas não consegui: papai me tratava muito bem, e eu ficava feliz da vida quando estava na companhia dele, e passei a morrer de medo quando chegava a hora de voltar para casa. Sabe por que, mamãe? Porque o tio a toda hora entrava no meu quarto e me batia, tanto mas tanto, que eu chegava a ficar sufocado. Um menino de 4 anos, convenhamos mamãe, imagina-se amado e protegido. Soube daquela história da mamãe pelicano, capaz de arrancar carne do próprio peito para alimentar o filhote faminto. Claro que não queria que você chegasse a esse extremo, mesmo porque não era essa a necessidade. Mas eu gostaria de ter contado com a sua proteção.
Veja, mãe: era difícil para este menino entender tudo isso. Pensava assim: a mamãe gosta desse cara, não sei porque ela gostava dele. E esse cara me odeia, não consigo entender porque nada fiz e nada faço para atrair tanto rancor.
Mãe, vendo a sua carta penso que, lógico, ficaria muito feliz com a minha festinha. Adoro bolo e doces de brigadeiro. Aqui, bem de longe, fico a pensar nas razões que te levaram a acobertar o tio Jairinho, porque eu fiz de tudo, do meu jeito, para que você soubesse da minha situação. Emiti sinais, como vocês, adultos, gostam de definir: chorei, vomitei, tive convulsões, sinalizei pânico no rosto e no olhar. Não entendo como você nada percebeu ou, desconfio, preferiu não perceber.
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Fora desse mundinho supérfluo que você, sei agora, adorava, porque preferiu envolver o tio com um manto protetor e não me agasalhar. Foi uma escolha de vida. Peço desculpas se você me via como um incômodo, um estorvo, um obstáculo. Mas aí tenho que decifrar um novo enigma: por que você, já que era assim, não me deixou com papai que gostava de ficar comigo e eu gostava de ficar com ele? Desculpe, não dá para entender.
Não sei o que é cadeia mas imagino o que seja ficar trancado. Estou sabendo que vocês dois, que viviam grudados, agora estão separados, e a história que viviam está chegando ao fim, pelo simples fato de que revelar tudo o que aconteceu de verdade implicará em mantê-los trancados. Mentir é o que podem fazer, até treinar para ensaiar uma mentira, como você escreveu numa das suas cartas. Estranhei isso, porque até onde sei advogado não existe para mentir, e sim para ajudar na aplicação correta da justiça. Talvez seja ingenuidade de minha parte, não sei. Mas sei que a verdade é ou não é, e que nada pode ser ou não ser ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Um tal de Aristóteles ensinou isso.
Na busca da filha em “A Cabana”, está escrito que viver sem amor é como cortar as asas de um pássaro. Então, mamãe, lamento te dizer, mas você cortou as minhas asas, as asas de um menino-passarinho com vontade de voar, como já cantou Luís Vieira.
Desculpe, quem sou eu para pretender te ensinar alguma coisa, mas Santo Agostinho, o grande teólogo e filósofo nos primeiros séculos do cristianismo, ensinou que a esperança nos legou duas filhas maravilhosas: a indignação (para não aceitar as coisas como estão) e a coragem (para mudá-las).
Não posso fazer nada. Observo, porém, verificando que por aí acontece com outras crianças (e mulheres) exatamente a mesma coisa que aconteceu comigo. É preciso coragem para reverter essa situação. É preciso indignar-se para o não conformismo com essa história anacrônica de macho-alfa, possuidor e predador. Basta, e na companhia de um pequeno adverbio: já!
Mamãe, faça a sua parte para que esse processo não termine em mais um escárnio. Penitencie-se. Arrependa-se. Separe-se da raça de víboras. De minha parte, não se preocupe. Não irei julgá-la, a tarefa é exclusiva do Tribunal do Júri, onde o processo está. Estou em outro lugar e não há mais sentido falar humanamente sobre coisas divinas. Dentro do possível, tenha um Dia das Mães com lembranças balsâmicas e confortáveis. O arrependimento exige eficácia. Seja eficaz introspectivamente.
Até não sei quando.
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