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Como ouvi as confissões de Chico Picadinho, o matador de mulheres

Os crimes bárbaros de um verdadeiro monstro

Arquivo Vivo|Percival de Souza

O assasino conhecido como "Chico Picadinho" ao lado do delegado de Magé
O assasino conhecido como "Chico Picadinho" ao lado do delegado de Magé O assasino conhecido como "Chico Picadinho" ao lado do delegado de Magé

A psiquiatria foi derrotada por um esquartejador. Preso há mais de quarenta anos, Francisco Costa Rocha, que ganhou na prisão o apelido de Chico Picadinho, está batendo o recorde de permanência no cárcere. A lei não sabe o que fazer com ele. Matou duas mulheres, à semelhança de Jack, o Estripador, que retalhava nas ruas de Londres, em plena Inglaterra vitoriana, e nunca foi descoberto. Não se estuda especificamente psiquiatria forense nas Faculdades de Medicina. Abre-se, assim, um vácuo temerário nada fácil para a distinção entre doente criminoso e criminoso doente. Por via das dúvidas, Francisco é mantido preso. Por causa dele, os psiquiatras tenderam a temer seus próprios diagnósticos.

Primeiro crime: rua Aurora, 83, apartamento 72. Plena Boca do Lixo. Ao lado, um cinema, Pedro II, que não existe mais. Cheguei ao local, como repórter do finado Jornal da Tarde, e o delegado titular do 3º Distrito, Rubens Liberatori, permitiu que eu entrasse. Difícil de ver o que restou da austríaca Margareth Suida. Na cama, o tronco, o corpo sem seios e nádegas. Partes dos braços e das pernas. Pedaços dos braços sem carne alguma, só ossos limpos. Difícil de ler? Eu sei. Mais ainda difícil é ver: aguentei por quinze minutos, depois de perceber que havia restos mortais jogados no sanitário.

Imaginei que tipo de gente seria capaz de fazer aquilo. Um monstro, primeira palavra que vem à nossa mente. Aprendi, estudando criminologia, a ciência que estuda o crime e o criminoso, que o único monstro com existência legal no planeta seria o do Lago Ness, na Escócia, e assim mesmo com licença concedida em caráter precário. Não vale citar o médico-monstro, do romance de Robert Louis Stevenson, e seus personagens Dr. Jekill e Mister Hyde.

Francisco foi preso. Liberatori, o delegado que permitiu que eu visualizasse a cena do crime, mandou tirá-lo da cela e o colocou na sua sala, para uma entrevista exclusiva. Fiquei frente a frente com o esquartejador da rua Aurora. Ele não desviou o olhar, foi contando coisas da vida, sofrida, e eu, propositadamente, numa técnica de entrevista, deixei a parte macabra para o fim. Ele me disse que a bebida alcoólica exercia um efeito devastador no seu organismo, e isso não era conversa fiada, mas um fato. E me fez um pedido: “por favor, não me chame de monstro”. Não o chamei. Quando Francisco chegou à antiga Casa de Detenção, na avenida Cruzeiro do Sul, um apelido nasceu de imediato, Chico Picadinho, e ficou para sempre.

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No rigor jurídico e ortodoxo prático, cada juiz, na sua esfera de competência, dá uma procuração automática para que o psiquiatra tenha, no processo, os mesmos poderes que o diretor da prisão – ou seja, analisar se o prisioneiro tem condições, ou não, de reintegrar-se à sociedade. Ninguém está interessado em distinguir psiquiatria da psicanálise. Mas isso já é outra história, mesmo sendo incontroverso que o inconsciente não se explica biologicamente.

Francisco tinha 24 anos na época do assassinato. Margareth, 25. A mulher, austríaca, era bailarina e passava as noites no antigo “Avenida Danças”. Era um lugar que cobrava do frequentador uma taxa para dançar, calculada num cartão picotado pelo tempo de movimentos na pista. Margareth era uma das bailarinas. Conheceram-se num botecomodesto, no centro da cidade. Saíram caminhando, sem destino, até Francisco fazer o convite para irem ao apartamento da Aurora, perto dali, que dividia com um médico, de início suspeito: em tese, saberia manejar muito bem um bisturi para retalhar. Mas isso nada teve a ver com o crime. Francisco comigo, olhos nos olhos, disse que fez uma proposta sexual não aceita por Margareth e por isso ficou enfurecido, a origem de estrangulamento. Depois, “vi que aquela mulher representava a minha vida e por isso quis destruir aquele corpo”. Representar a vida, pedi para ele detalhar, seria a mãe que também se prostituía. Fiz de conta que entendi. Paro por aqui, para evitar constrangimentos descrevendo circunstâncias que não tive muita coragem para ver. Acrescento coisas mais suaves: ele me disse que “aprecia muito” Beethoven e Tchaikovsky e dos escritores russos Gorki e Dostoievski. Toma conta da biblioteca da prisão, onde está o meu A revolução dos loucos.

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Um psiquiatra assistiu a entrevista. Admitiu existir o que chamou de “embriaguez patológica”. Margareth significaria ”tudo de ruim que se vê no mundo, na vida”. Não foi crime premeditado, analisou, porque não se justificaria o ódio extremo pela vítima. Ódio e amor teriam uma espécie de graduação, “não é de uma hora para outra que se ama ou odeia uma pessoa”. Seria este o caráter patológico do crime.

Francisco saiu do 3º Distrito, então uma casa alugada na rua Guaianazes, e foi para o antigo (hoje demolido) Presídio Tiradentes, onde estiveram Monteiro Lobato, Dilma Rousseff, Nelson Gonçalves e o bicheiro Ivo Noal. De lá, Casa de Detenção. Depois, Penitenciário do Estado. Por fim, Casa de Custódia de Taubaté, hoje Presídio Tremembé, no Vale do Paraíba. Estranho: apesar dos laudos psiquiátricos, Francisco nunca passou pelo Manicômio Judiciário.

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A derrota psiquiátrica: Margareth, morta em 1966, Francisco solto dez anos depois, em liberdade condicional, graças a laudo psiquiátrico. Uma década foi o intervalo para voltar a matar e a esquartejar. A nova vítima, Ângela de Souza da Silva, morava na avenida Rio Branco. Perto da rua Aurora, local do primeiro crime. Na repercussão social do caso, a soltura de Francisco foi considerada um escândalo. Daí por diante, não se teve mais coragem de elaborar diagnósticos positivos. A medida de segurança transformou-se, na prática, em prisão perpétua. No passado, vigorava o princípio legal chamado duplo binário, isto é, o criminoso cumpria a pena imposta e a seguir, quando necessária, se aplicava uma medida e segurança detentiva. O critério foi volatizado: passou a se aplicar pena ou medida de segurança, em tese sempre prorrogável. Agora, teme-se não a Francisco, mas os laudos sobre ele.

Estive várias vezes com Francisco, tanto na Casa de Detenção como na Penitenciária do Estado, uma das obras do arquiteto Ramos de Azevedo, hoje transformada em Penitenciária Feminina. Ele sempre me reconheceu, por causa da entrevista que fiz com ele na Polícia, chamando-me pelo nome e sorrindo. Visitantes, geralmente advogados e estudantes de várias áreas, têm curiosidade em conhecê-lo. Olham-no como se fosse um exemplar da fauna exposta num zoológico humano. A reação é sempre de surpresa: se você for ao presídio e conversar com ele, sem saber que se trata de Francisco, nunca irá imaginar que é ele o esquartejador de mulheres: gentil, amável, trabalha e tem um comportamento exemplar. Como “monstro”, é uma decepção ao vivo. Nada tem de feroz, como acontece com muitos outros prisioneiros. O histórico do homem, hoje com 75 anos, se confunde com o personagem que você está vendo e pode conversar. Gosta de pintar quadros. Vendo-os, lembrei-me dos versos de Cassiano Ricardo: “Arte e loucura são flores diversas num só ramo, como a lágrima é irmã gêmea do orvalho”.

O assassino Chico Picadinho em foto de 1993, em Sp
O assassino Chico Picadinho em foto de 1993, em Sp O assassino Chico Picadinho em foto de 1993, em Sp

O mundo do cárcere é evitado. Ninguém quer saber muito dele, porque muitos dos seus habitantes despertam repulsa pelos atos que praticaram aqui fora. Lá dentro, o maior representante do Estado é o carcereiro. É ele quem está no dia-a-dia do prisioneiro. Em segundo lugar, estão as sofridas mães, que não abandonam seus filhos, coisa que os amigos deles fazem de imediato. A gang antiga desaparece. Consideram mais seguro evitar contatos imediatos. Conheço de perto essa realidade, sobre ela escrevi dois livros – A Prisão e O Prisioneiro da Grade de Ferro. O terceiro lugar é ocupado de maneira solitária por algumas igrejas, entre elas a Universal. Pregadores solitários, mantendo em vigor permanente a lógica de Santo Agostinho: odeio o pecado, mas amo o pecador.

Dentro desse espírito, uma delas me convidou para fazer palestra para um grupo selecionado de presos cumprindo longas penas. Uma palestra evangelizante. Evangelho quer dizer boa notícia e por isso penso que o primeiro repórter da terra tenha sido a pomba da arca de Noé, que ao retornar com um ramo de oliveira no bico, dias de espera pós-dilúvio, era portadora da grande notícia: a vida estava salva. Os presos estavam reunidos para me ouvir. Entre eles, Chico Picadinho. Tensos. A minha apresentação foi feita pelo juiz-corregedor dos Presídios e das Execuções Penais, Renato Laércio Talli, autor do convite. Tentei passar uma mensagem de esperança diante dos olhares surpresos da plateia encarcerada, que parecia não entender bem como um jornalista criminal lapidasse tesouros extraídos das Escrituras Sagradas, conectando realidade da vida com o manual divino.

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