Cupertino, o matador fugitivo

Ciúme doentio e ódio fizeram Paulo Cupertino matar a sangue frio namorado da filha e também seus pais

  • Arquivo Vivo | Percival de Souza, da Record TV

Paulo Cupertino foi finalmente capturado pela polícia após três anos

Paulo Cupertino foi finalmente capturado pela polícia após três anos

Divulgação/Polícia Civil - 17.05.2022

Três assassinatos, três anos em fuga. O que levou Paulo Cupertino a matar e fugir?

A questão, como ensinou Francesco Carnelutti, jurista de grande porte, autor de As Misérias do Processo Penal, é que não se pode colocar numa mesa de anatomia, como se fosse um corpo, a alma humana, para não confundir o espírito com o cérebro. O direito penal, salientou, é o direito da sombra, “mas precisa atravessar a sombra para chegar à luz”.

O caso Cupertino, buscando luz, gira em torno dos conceitos de Carnelutti. Para tentar compreendê-lo, se é que isso é possível, vamos nos ater, rigorosamente, aos fatos.

A besta-fera travestida de ser humano nutria ciúme doentio da filha, que, por causa dessa verdadeira possessão, namorava um rapaz, o ator Rafael Miguel, às escondidas.  Cupertino ficou furioso. Ruminava visivelmente seu ódio pelo jovem que nem conhecia. Que fazer? Promover um encontro respeitoso, para mostrar claramente as intenções de Rafael com a filha Isabela. Seria um almoço familiar, quando Rafael, acompanhado pelo pai e pela mãe, pediria solenemente, mostrando as suas excelentes intenções, autorização formal de Cupertino para o namoro com a filha.

Não houve tempo para dizer nada. Munido com uma pistola semiautomática, carregada, foi disparando sequencialmente, fuzilando filho, pai e mãe, que tiveram morte instantânea. A seguir, fugiu.

Fugiu e desapareceu, deixando para trás a casa, familiares, uma oficina de autopeças que possuía, e caiu no mundo, para lugares que não se saberia tão cedo. Seus rastros de sangue foram uma família inteiramente destruída, a filha atônita e desolada. Uma perplexidade que tomou conta do país. Marca registrada do ódio, porque para ser tão violento é preciso, primeiro, aprender a odiar. Cupertino transformou-se em símbolo desse ódio mortífero, que não nasce de repente, pois é alimentado gradativamente, até chegar ao extremo de fuzilar implacavelmente. As tentativas de definição do ato praticado, precipitadas, não cabem aqui. É muito cedo, ainda, para num divã psicológico ou psiquiátrico fazer avaliações que exigem diagnóstico fundamentado e rigorosamente elaborado. Um giro existencial em torno da periculosidade de Cupertino, que inevitavelmente receberá uma longa sentença condenatória.
O caso do feroz tríplice assassinato tem circunstâncias, entretanto, que podem ser definidas a priori. Não se pode dizer, em hipótese alguma, que ele estivesse fora de si, sem saber o que fazia, porque a seguir, sabendo muito bem o que fazia, empreendeu conscientemente uma longa fuga, próxima de 36 meses. É preciso muita consciência para saber, de forma articulada, tudo o que se está fazendo, ou seja, por que e de que se está fugindo.

Os adjetivos são insuficientes para classificar Cupertino. A torpeza do tresloucado ato praticado, chamada judicialmente de “qualificadoras”, contempla o sangue ruim: a canalhice, selvageria, estupidez, perversidade, brutalidade, babar sangue — tudo isso, e muito, em grau máximo. Cupertino fundiu esses sentimentos dentro dele mesmo.

Por trás das mortes seguidas de fuga, existem histórias emblemáticas. Para conseguir sumir do mapa por longo tempo, contou com uma eficaz rede de apoio, ou seja, com pessoas que o ajudaram a manter-se oculto, protegendo-o mesmo sabendo plenamente quais eram os motivos para ele viver permanentemente escondido.

Quer dizer: existem pessoas que, mesmo sabendo de tudo que se trata, não hesitam em dar apoio, numa conivência explícita com os crimes praticados.

Cupertino na época do assassinato (esq.) e no dia em que foi capturado pela polícia, em São Paulo

Cupertino na época do assassinato (esq.) e no dia em que foi capturado pela polícia, em São Paulo

Reprodução/Record TV

O périplo estendeu-se pelos mais variados lugares, dentro daquilo que nossa frágil lei chama de “favorecimento pessoal”. A rigor, essa atitude vem a ser, como dizem no nordeste, “acoitar”, ou seja, proteger, encobrir, endossar, camuflar, ajudar, ou qualquer sinônimo que se empregue, para, em coautoria indireta, fugir da lei. Há várias pessoas nessa situação complacente e apoiadora. Não há justificativa para isso, nem razões que, tentam insinuar, seriam humanitariamente compreensíveis, pois violam um mínimo de senso ético, como se endossar autoria de crimes bárbaros não fosse repugnante.

Tudo o que foi proporcionado por essa rede de proteção não será totalmente descoberto. A única certeza é que, para ser beneficiário de tantos favores perigosos, Cupertino já os tinha justificado com muita antecedência. Esse vínculo, que só pode ser umbilical, inclui rotas de crime das mais organizadas, porque ele foi de São Paulo, onde os crimes foram praticados, para o Paraná, e de lá, por avião pilotado por um “amigo”, para o Paraguai. No país vizinho, não se contentou em ficar por perto de Foz do Iguaçu e muito menos na fronteira com Ciudad del Este. Embrenhou-se em direção a Coronel Oviedo, pensando nas alternativas para Capitán Bado ou Pedro Juan Caballero, que considerou região das mais perigosas, porque envolve sangrenta guerra pelo monopólio do poder criminoso entre facções ligadas ao tráfico de drogas.
Foi aconselhado, então, a ficar por ali mesmo. O “amigo” piloto tinha relacionamento com o dono de uma fazenda, onde Cupertino se alojou com o falso nome de Manoel e por causa disso ficou conhecido como “señor Manoel”. Cuidava de gado, inclusive ordenhando vacas, e mudou de aparência: cortou os cabelos, deixou bigode e barba e usou chapéu sempre.

A polícia até que tentou encontrá-lo nesse esconderijo, mas ele escapou antes, apesar do empenho do delegado Fábio Pinheiro Lopes, ex-diretor da Divisão de Homicídios e hoje diretor do Deic. Ficou por pouco tempo na fronteira com Ponta Porã, onde montou uma banca, sobre um carrinho, para vender sanduíches.

Mas era inevitável que os protetores de Cupertino fossem se cansando. Afinal, não fica barato manter um esquema desses por tempo indeterminado. Até quando poderia continuar nessa odisseia?

A rigor, para não cair na vala do esquecimento, por causa da grande lista de procurados que existe, o empenho da polícia se deve ao fato de a Record TV não ter abandonado o caso, forçando a polícia a considerar a captura de Cupertino uma questão de honra.

Assim foi. Esgotaram-se as fontes de dinheiro. Dívidas anteriores aos crimes já estavam para lá de saldadas. Cupertino, certo de que três anos depois dos crimes uma amnésia havia tomado conta da maioria das pessoas, resolveu voltar para São Paulo. Indicaram um lugar para ele se esconder sem despertar suspeitas, um hotel simples em Interlagos. Lá dentro, no quarto 27, montou um verdadeiro guarda-roupa de disfarces, incluindo chapéus, como um vistoso modelo panamá. Máscaras por protocolo sanitário também o ajudaram. Para completar, usava uma bengala quando saía do hotel, para fazer de conta que precisava apoiar-se nela para caminhar. Para onde ia? Sabe-se, até aqui, que quatro pessoas faziam parte do esquema de “favorecimento pessoal“, que serão processadas por isso. A maioria dessas pessoas, entretanto, não está no Brasil e sim no país vizinho.

O caso Cupertino desfaz teorias. Uma delas é que não há como prever a prática de homicídio, a expressão máxima da violência, sendo falsa a utilização política para estatísticas que indicam diminuição da prática de assassinatos. Por quê? Porque as motivações para matar são interpessoais. Como no caso Cupertino, ninguém poderia prever que uma família toda fosse dizimada por um ensandecido assassino.

De novo, o jurista Carnelutti para nos ajudar: um processo, como esse de Cupertino, que está começando a sua provavelmente longa trajetória até chegar ao júri, é um “banco de prova da civilização”, pois o delito, “com tintas mais ou menos fortes, é o drama da inimizade e da discórdia”. Eis aí o DNA, o código genético do sanguinário Cupertino.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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