Eu, o menino que foi assassinado no Rio de Janeiro
Percival de Souza mostra que "os corpos falam" e que o de Henry também fala e revela tudo o que aconteceu
Arquivo Vivo|Percival de Souza, da Record TV (*)
Meu nome é Henry Borel, tenho (ou tinha) quatro anos, aninhos como vocês adultos costumam dizer, fui encontrado de repente à beira da morte, e ela logo chegou. Agora, ficam discutindo, com fervores antagônicos, o que poderia ter acontecido comigo. Não posso dizer nada, embora saiba muito bem o que aconteceu, porque senti tudo na carne, e bem que gostaria de, em linguagem compreensível, fazer um relato esclarecedor.
Eu posso dizer, sim, o que aconteceu. Sou um menino do Rio, como já cantou Caetano, “calor que provoca arrepio...”, mas não tive tempo suficiente para ficar apenas arrepiado, porque fiquei mesmo foi aterrorizado. Não esperava, de jeito nenhum, ser atacado de madrugada em meu quarto.... aliás, morava muito bem, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Gostava de admirar aquela estátua da liberdade, à entrada do shopping, muito parecida com aquela famosa de Nova York.
Você pode questionar este menino. Como eu poderia contar, sem palavras, o que houve? Como eu poderia recapitular fatos, se nem mais a vida eu tenho?
Pois é aí que vocês, adultos, se enganam. É preciso se tornar como uma criança para ganhar o reino dois céus, ensinou Jesus. Vocês comemoram a Páscoa agora, não? Acho que Ele disse isso porque criança não tem maldade, coração limpo não cultiva o ódio, não tem espírito de vingança e, em estado de pureza, acaba sendo uma página em branco a ser escrita, de preferência cuidadosamente. Uma página em branco, uma história a ser construída, contada, bonita ou triste. A minha história foi interrompida. Iria contá-la no futuro, na esperança de que tivesse coisas bem legais para revelar.
Eu sei, você deve estar pensando que este moleque é atrevido precoce em suas considerações sobre a própria história – esta sim, triste, mórbida, macabra, sinistra. Vocês gostam de adjetivos, não? Eu preferiria usar outras palavras, mas nesse caso o linguajar adulto aqui se torna necessário. Não tenho esse tipo de vocabulário, não tive temo para aprendê-lo, mas também eu posso empregá-lo, descrevendo do meu jeito as coisas pelas quais passei.
Há um colunista, aí no R7, que tem a mania de escrever, de vez em quando, que “os corpos falam”. Acho isso meio esquisito, mas soube que ele, que tem um blog chamado Arquivo Vivo, estudou com um professor em criminologia - dizem vocês que esta é a ciência que estuda o crime e o criminoso. Não sei o que é isso porque não passa pela minha cabeça a vontade de fazer ou desejar o mal a alguém. E nem descobrir porque se fez isso. Acontece que eu, sem querer, me transformei em personagem. Só que, desculpem, me tornei sem querer um arquivo morto.
Veja bem: dizem que eu fui encontrado no quarto com a boca espumando e os olhos revirados. Era o que dava para se ver. Mas o pior estava por dentro de mim. Levaram-me para um hospital. Não aguentei. Morri.
Estou agora em outra dimensão. Percebo que vocês querem entender, ou descobrir, como uma criança de quatro anos pode morrer assim de repente e do jeito que morreu. Eu também gostaria de saber qual a razão para tanta maldade, porque nunca fiz e nunca quis fazer mal a ninguém. Matar como me mataram, exige muito ódio, que eu nunca fui capaz de sentir. Aliás, nem teria razão para isso.
Gostaria de falar, mas não tenho mais como. Queria contar tudo.
Claro que os meus olhos ficaram revirados. De terror. Claro que saiu espuma da minha boca. É reação do corpo. Elementar, como diria um detetive em casos de romances de mistério que vocês, adultos, gostam de ler.
Mas, saibam todos, o meu corpo pode falar! Inerte, ele pode descrever, para quem souber conversar com ele, quais motivos levaram-no a ficar imóvel desse jeito. Esse alguém é o legista, médico que trabalha num lugar horrível, chamado Instituto Médico Legal, onde faz um relato completo – que vocês chamam de laudo – sobre a causa que fez interromper tudo. Porque uma vida chega ao fim. Vocês usam um palavrão para querer explicar isso, necrópsia. Nada tenho a declarar, pela boca, mas esse tipo de médico maneja alguns instrumentos, vai verificando o que aconteceu por dentro de você, anota e escreve. Quer dizer: ele conta aquilo que o corpo informou a ele. Como se fosse um ventríloquo diferente.
Recordar para contar é difícil para mim. Preciso tomar fôlego. Foi horrível.
Bateram muito em mim. Quer dizer: uma pessoa, que eu vi, bateu demais em mim. Estraçalhou-me por dentro. As palavras do doutor são insuficientes para contar o que esta pessoa me fez. Espancamento. Ação contundente... pancadas, murros, socos, pontapés... hemorragia interna... rompimento do fígado... laceração hepática... infiltração de sangue na parte frontal da cabeça...contusão rim... traumas pulmonares... muito sangue sobre a barriga...porradas - palavra feia esta, não?
Foi muito sofrimento. Agressões, pancadas, golpes desferidos ao longo de minutos, com tanto ódio, tanta brutalidade, que eu não tinha como tentar escapar, fugir, acuado, encurralado, apavorado, e a pessoa batendo sem parar, mais e mais, até eu não aguentar mais e desmaiar. Morrer seria mesmo melhor do que continuar passando por aquilo.
Então, comecei a morrer aos poucos. A morte como refrigério. Só pude olhar nos olhos de quem me batia no começo de tudo. Depois não consegui mais. Lembro-me de que a pessoa me olhava com olhos fuzilantes, penetrantes. Não me lembro de ter feito alguma coisa que pudesse provocar tanta ira, porque estava sozinho em meu quarto e não poderia ter perturbado ninguém.
Esta é a minha história. Que mal eu fiz?! A história da minha curta vida. A história da minha morte.
Vocês, adultos, vão revirar esses detalhes porque vocês cultivam algo, que eu ainda não consigo compreender, chamado ordenamento jurídico, para minuciar o que fizeram comigo. Sei muito bem que o que foi feito, não se poderia jamais ter feito aquilo. Quem fez, sabe muito bem disso, e faz de tudo para esconder-se (não é coisa de gente), enganando, camuflando, mentindo, contando meias verdades. Até nem parece, em certos momentos, que a vítima não sou eu. Fenecem minhas esperanças para a construção de um ser humano melhor, que eu pretendia ser. Quem me matou, deve estar fazendo cara de santo.
Sou espectador fora dos limites espaço-tempo. Longe de mim pretender ensinar para adultos o que devem e podem fazer. Eu sei quem queria me matar e matou.
Sei que estava sozinho no quarto. Sei que ninguém estranho entrou nesse quarto, ou o invadiu. Sei que não havia mais ninguém, além de mim, ali dentro. Sei quem me atacou. Só não sei o porquê.
Acho curioso o jogo de palavras utilizado para tentar explicar minha triste história. Algumas, em tom de defesa, embora não se acuse frontalmente a ninguém de ter me matado. Fala-se em “reconstituição”, que implicaria numa confissão. Mas ninguém confessa. Acho que nem vai confessar. O que se pode pensar, no máximo, seria numa simulação.
Estou quebrado, dilacerado, arrebentado. A chamada “justiça” não vai me restituir a vida. Confissão? Acho difícil, porque não fica bem assumir um crime horroroso como este. Um lampejo de consciência, talvez ajudasse. Mas esse lampejo seria divino e trucidar um menino de quatro anos nada tem de divino. Arrependimento? Nem pensar: a pessoa que me matou teve tempo mais do que suficiente para interromper a sua sangrenta sanha assassina. A minha morte será a herança de quem me matou e que não vai querer admitir que é um monstro.
Fico pensando, agora que estou longe de vocês, que a tarefa de descobrir o que me fizeram tenha algo a ver com decifrar os enigmas da alma humana, na busca da interpretação de uma tragédia como a minha.
Essa alma humana também estaria gravemente infectada em tempos de pandemia, precisando urgentemente de uma vacina de humanização? Não tenho ideia, a essa pergunta vocês é que terão de responder.
Pronto. Consegui acabar. Adeus.
(*) Avô de um menino de quatro anos, chamado Gustavo, e que é parecido com Henry. À ele dediquei, com amor, meu livro reunindo crônicas desta coluna. A Henry, não sei o que dizer – a não ser pedir: perdão, garoto.
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