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Lázaro matador não era Hannibal Lecter

Arquivo Vivo|Percival de Souza, da Record TV

Lázaro Barbosa e o personagem Hannibal Lecter
Lázaro Barbosa e o personagem Hannibal Lecter Lázaro Barbosa e o personagem Hannibal Lecter

Lazaro está morto e por ele os sinos não dobram. A sua história é repleta de barbarismos inadmissíveis para a espécie humana. Mas depois que seu corpo se transformou numa peneira humana, tantos foram os tiros disparados contra ele, um disfarçado sentimento de piedade de apoderou de muitos, que não querem, ao mesmo tempo, justificar o ato final da caçada humana e nem ter uma súbita amnésia pelo que motivou sua fuga, durante vinte dias, por uma mata na região centro-oeste do Brasil.

Como ficar no meio termo, diante dessa situação ou dilema em formato de desafio intelectual?

É preciso tomar uma boa dose de conhecimento e discernimento para saber avaliar tudo o que aconteceu. Sem concepções a priori, ranços raivosos, ficar primeiro de um lado para depois procurar saber o script do enredo; ser a favor ou contra a polícia (que sempre existirá), vitimizar o procurado e ignorar, cegueira deliberada, o trauma sem fim vivido pelas vítimas.

O primeiro passo pode ser retirar a máscara dos mitos. O primeiro deles é que Lazaro não se tratou de, exatamente, um serial killer. Este personagem, raro, se compraz em ceifar vidas em sequência, com desfrute de prazer, sempre com as mesmas características, porque esta é uma forma de obter satisfação, identificando-se no modo de agir como o autor dos crimes e ficando feliz em se ver tão procurado e nunca achado, até que apareça um bom detetive, capaz de prestar atenção a um detalhe até então ignorado.

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Já se fez um filme muito bom a respeito,”O Silêncio dos Inocentes”, com base num livro escrito por Thomas Harris. Na tela do cinema, o papel do matador ficou por conta de Anthony Hopkins e de uma heroína, a detetive do FBI interpretada por Jodie Foster. Ele, Hannibal Lecter, um doutor psiquiatra. Ela, Clarice Starling, uma mulher linda. A tática para pegar o criminoso seria usar a moça como isca, um duelo de inteligência com Hannibal, que sabe tudo sobre comportamentos, inclusive o dele próprio.

Os palpiteiros que abundam em todos os casos focaram Lazaro e foram para cima dele com todo tipo de imaginação. Aí entraram coisas como vinculação a uma seita, da qual – inventaram – ele seria adepto e cumpriria “ordens”, além de carregar na mochila um livro (que nunca foi encontrado) com histórias de feitiçarias e bruxarias. Assim, ele seria um instrumento que se julgava cumpridor de uma “missão”.

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A realidade, porém, só pode ser mudada pela própria realidade, como já dizia Brecht. Daí a concentração de tropas na área que abrange proximidades de Goiânia, como Edilandia, Cocalzinho e Águas Lindas. Como sobreviver por tanto tempo na mata? Somente sendo do ramo, ou seja, tendo conhecimento da mata, mateiro, ou caçador, sabendo alimentar-se dos frutos da mãe-natureza sob pena de morrer de inanição. Além disso, possuir uma resistência física e psicológica para poder suportar todas as adversidades, inclusive descansar, dormir, alimentar-se.

Nesse cenário, contemple-se a região. Muita mata, fechada, rios, riachos, grutas, cavernas – uma delas, a maior da América Latina, ponto turístico na região.

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Hannibal Lecter tinha tendências canibalescas. Lázaro trazia dentro de si não se sabe exatamente o que, porque não existem laudos psiquiátricos póstumos, nem virtuais. O que se sabe, no caso de uma família trucidada em Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, é que a casa da família Vidal foi invadida. Lá dentro, pai e dois filhos foram assassinados. Cleonice, a mulher foi arrastada para fora da casa, levada para o interior da mata e encontrada sem roupas e os cabelos cortados. Havia indícios de abuso. Após tudo isso, à beira de um rio, ela recebeu um tiro na nuca. Pode-se dizer que nesse episódio ele teria sido alimentado pelo desejo de matar e a cobiça sexual. Marido e filhos tenham sido mortos porque tentaram evitar que Cleonice fosse arrebatada.

Hannibal Lecter, extraordinariamente interpretado no cinema por Hopkins, sentia um prazer doentio ao selecionar suas vítimas, emboscá-las, torturá-las, matá-las e uma satisfação íntima em, como psiquiatra, sentir-se superiormente capaz de ludibriar a tudo e a todos, sem capacidade intelectual para enfrentá-lo. Clarice Starling foi a exceção que ele nunca pensou em encontrar. Lecter encantou-se com ela.

Lazaro era um enigma, porque não conseguiria esticar o tempo de sobrevivência infinitamente na mata. Teria de sair dali e suas únicas ligações fragilmente afetivas eram ligadas à sogra e a ex-mulher. Foram, literalmente, seus últimos contatos.

Como sempre acontece no Brasil, procura-se explorar politicamente qualquer fato. Quem manda nas buscas policiais? O Distrito Federal, dizia o governador, porque este foi o palco dos assassinatos da família Vidal. Goiás, dizia o governador, porque lá estavam concentradas as buscas. Nessas circunstâncias, Lazaro viu-se transformado em troféu de caça a ser gloriosamente exibido, a qualquer tempo, mesmo com um certo vexame pago pelas buscas infrutíferas durante mais de duas semanas.

O caçado sabia que a questão era de vida ou morte. É evidente que os seus caçadores não estariam dispostos a deixar por menos todos os dissabores causados pela busca. Lazaro, armado, surpreso com o seu próprio sucesso em viver escapando ou tentando escapar, julgou-se em condições, também, para o enfrentamento, o que no caso concreto foi insano por motivos óbvios.

O desenlace tem sido alvo das mais variadas interpretações. É certo que é eticamente duvidoso celebrar a morte de alguém, com gritos histéricos, abraços, sorrisos e palmas. Não ficada nada bem para a espécie humana o que para alguns seria catarse. O difícil é convencer a população local do contrário, como é difícil aceitar sinais de compaixão por Lázaro e nenhuma demonstração de piedade pelas pessoas quem ele trucidou, conforme se constatou nesse episódio. É a ausência de regras, falta de normas, a anomia descrita pelo sociólogo Durkheim.

Paga-se um preço bem alto por isso: Lazaro, a rigor, não poderia estar solto de jeito nenhum, por força do seu currículo criminal pretérito repleto de barbaridades, projetando para o futuro – reincidência – a repetição dos atos já praticados. Sobre isso, não cabem sofismas. Nada pode ser ou não ser ao mesmo tempo e no mesmo lugar, já sentenciou Aristóteles, o pai da a frase “a lei é o juiz mudo”. A mudez, no caso, já serviu para libertar Lazaro quando ele jamais poderia ter sido solto, agraciado com benesses juridicamente duvidosas, como incabível progressão de pena e autorização para “saidinhas” do presídio, sem pé e nem cabeça. É de se perguntar o que não pode mais ficar entalado na garganta: quem paga a conta por esses equívocos, letais para a sociedade?

Triste moral da história: Lazaro foi vítima dele mesmo. Recebeu estímulos e, em liberdade mesmo tendo matado e estuprado, sentiu-se confortável para continuar

levando o mesmo tipo de vida que levava. As circunstâncias de vida, endógenas e exógenas (peritos adoram usar essa definição em laudos), mostram que a formação da personalidade de cada um passa por variantes de origens internas e externas. Somos nós e nossas circunstâncias, já ensinou o sociólogo Ortega y Gasset.

É o DNA incômodo do caso Lázaro, resumido com maestria por Truman Capote em “A Sangue Frio”, livro em que o notável escritor descreve o caso de uma chacina em Helcomb, no Kansas, onde uma família inteira foi assassinada. Instalou-se o pânico na região. Capote escreveu: “quando o medo se instala nos corações, é inútil colocar tranca na janela”. No centro-oeste, o medo era representado por Lazaro. O resto... foi o resto.

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