Logo R7.com
Logo do PlayPlus
Publicidade

Morte da dona do restaurante O Gato Que Ri é um mistério até hoje

Local é ponto tradicional do centro de São Paulo e foi palco de um crime que a polícia não conseguiu solucionar

Arquivo Vivo|Por Percival de Souza

Crime manchou o nome de um dos mais tradicionais restaurantes paulistanos
Crime manchou o nome de um dos mais tradicionais restaurantes paulistanos Crime manchou o nome de um dos mais tradicionais restaurantes paulistanos

O felino começou a sorrir na Itália, onde nasceu na bela cidade de Veneza. Foi lá que o restaurante nasceu e depois instalou-se em São Paulo, no Largo do Arouche em 1951, ponto charmoso, três anos antes da cidade completar o seu quarto centenário. Dona Amélia, imigrante, trouxe na bagagem receitas de massas italianas deliciosas e usou das suas grandes habilidades na cozinha para fundar O Gato que Ri, restaurante de destaque da gastronomia italiana e feijoada aos sábados. Mas o gato de ontem não é esse gato de hoje.

Amélia Mazotti Montanari cuidava pessoalmente da elaboração do cardápio e da confecção dos pratos. Cultivava os clientes com simpatia, conhecia-os pelo nome e sabia das preferências de cada um, o que não a impedia de fazer contínuas e saborosas sugestões, geralmente aceitas.

O Arouche era uma das regiões mais elegantes da cidade, com suas barracas de flores. Chegou a ser conhecido como Praça das Flores. É palco do primeiro bistrô da cidade e a sede da Academia Paulista de Letras. Uma atração turística (como seria hoje a rua Avanhandava), hoje degradada como tudo no centro velho.

Os hábitos de dona Amélia eram regulares. Ocupava um apartamento na parte superior do restaurante, onde se recolhia pouco depois do anoitecer, estando de pé logo cedo no dia seguinte. Naquela manhã de 1983, a rotina não foi seguida e os empregados estranharam quando ela não desceu para o café. Esperaram até a hora do almoço. Nada de dona Amélia. Resolveram entrar no apartamento e... a mulher estava estirada, imóvel sobre a cama. Dona Amélia, estúpida e cruelmente espancada, tinha sido assassinada.

Publicidade

A Polícia de São Paulo não lidava com um caso assim desde o longínquo 1938, quando os donos de um restaurante chinês, Ho-Fong e a mulher Maria Akiau, na rua Wenceslau Brás, perto da Praça da Sé, foram encontrados mortos lá dentro, numa quarta-feira de cinzas, juntamente com dois empregados. Um ex-funcionário seria acusado pelos crimes, tema de uma longa batalha jurídica.

Mas essa história já estava perdida no tempo. Dona Amélia, a italiana, o que poderia levar alguém a matá-la? Que motivação poderia haver em assassinar uma mulher tão querida por todos?

Publicidade

Puxando a memória e os arquivos criminais, os policiais encarregados da investigação relembraram o caso de um italiano, Giuseppe Pistone, que matou a mulher Maria Fea, esquartejou-a, e tentou despachar o corpo, num navio, dentro de uma mala, para a França. O forte cheiro chamou a atenção na hora dos despachos e o caso foi descoberto. A mala do crime está exposta, hoje, no Museu do Crime, na Academia da Polícia de São Paulo, Cidade Universitária. Pistone foi condenado a 31 anos de prisão. Maria Fea foi sepultada no cemitério da Areia Branca, em Santos, onde ainda hoje atrai visitantes.

E dona Amélia? De início a Polícia conjecturou que ela pudesse ter um caso amoroso com alguém. Chegou a suspeitar-se de um gerente e de um garçom, mas nada foi possível provar contra ninguém, mesmo com a Polícia apelando para métodos nada ortodoxos de investigação. As meras suspeitas ajudaram agentes sem escrúpulos a ganhar um bom dinheiro em troca de não levar em consideração algo que, na verdade, nem existia.

Publicidade

Crimes intrigantes exigem bons detetives. Não existe perfeição nessa matéria, como ensinou Conan Doyle por meio do seu personagem Sherlock Holmes, auxiliado pelo eficiente Watson. Por vezes, a autoria de um crime pode estar bem mais perto do que se pensa. O escritor Edgard Allan Poe mostra isso em seu conto A Carta Roubada: um ministro procura desesperadamente uma missiva, roubada dentro de seus aposentos e, quase desistindo, pede ajuda a um detetive, que a encontra sobre a escrivaninha do seu próprio escritório. Elementar, comentaria Sherlock, mas nem sempre o óbvio é considerado tão óbvio assim.

A cena de um crime misterioso é sempre um desafio para os neurônios. O Sherlock de carne e osso chega ao local e tem diante de si apenas um cadáver. Quem foi? Eis a questão. No caso do restaurante com nome de felino risonho, também aconteceu desse modo. Pelas aparências, o assassinato somente poderia ter motivação passional, ou teria sido um ladrão, ou teria sido uma vingança, ou uma explosão emocional de momento, ou...

Ou o quê? Se o caso tivesse acontecido nos dias de hoje, eu examinaria todas essas possibilidades e hipóteses, mas levaria em consideração uma filosofia de vida (aplicável no dia-a-dia da Polícia), que diz: “o homem é o lobo do homem”. Em termos práticos: o lobo é o ser humano, predador de si mesmo, seu próprio inimigo. Destrói para satisfazer a sua cobiça, a sua ganância, a sua vontade de ter o que não poderia ter. Este é o lobo, mau por natureza, dentro e fora de seu habitat. Esse conceito de lobo predador que é o homem foi firmado sabiamente por Thomas Hobbes, filósofo inglês. Com toda razão: dona Amélia foi vítima de um lobo. O lobo que atacou sem piedade a dona do gato. Dona Amélia era o símbolo do próprio gato. Ela personificava o animal, que por sua amabilidade permanente não miava, mas sempre sorria. O lobo pode estar numa alcateia, mas também pode ser perigosamente solitário. Poupe-o e você condenará as ovelhas à morte, escreveu Victor Hugo.

Prisioneira de um círculo que gira em torno de fatores e circunstâncias, a Polícia viu tudo o que poderia ver e concluiu que as clássicas interpretações para levar à elucidação de um crime não valeriam para o caso de dona Amélia. Definitivamente, o assassino deveria ser alguém fora desse círculo para que o mistério pudesse ser decifrado. Eureka! Elementar! Atenção: nem Arquimedes, nem Holmes. No máximo, uma travessia do Atlântico.

Esgotadas as possibilidades teóricas, uma ausência no Largo do Arouche passou a ser notada. A de um homem. Parente de dona Amélia. Não que ele fosse sistematicamente ao Gato que Ri, mas o fato é que dona Amélia tinha trazido um sobrinho da Itália para o Brasil para dar-lhe uma chance, uma oportunidade. As coisas estavam difíceis na Europa pós-segunda guerra mundial. Coisa de família.

Mas... onde estava o sobrinho? Ninguém sabia, ninguém havia visto. Na cena do assassinato de dona Amélia, o apartamento tinha sido revirado e todas as suas joias, além de uma importância em dinheiro que não se sabia quanto era, tinham desaparecido. O matador de dona Amélia levou tudo. Procura-se por toda parte e nada. Foi então que se descobriu que o homem havia comprado uma passagem de navio e embarcado. Não para a Itália. Para disfarçar, talvez. Nunca mais se soube qualquer coisa do sobrinho, em tese o causador da terrível desgraça. Suspeito, diríamos ao sul do Equador. Em termos formais, o caso permaneceu no rol dos insolúveis, e assim permanecerá, porque entre nós crimes de morte prescrevem depois de passados vinte anos. No caso do felino, 35 anos. Crime perfeito? Não, porque segundo Sherlock Holmes, não existe crime perfeito e sim investigações imperfeitas. No Brasil, a maior parte dos assassinatos fica sem solução. Ou seja: muitos criminosos sequer são identificados. Nas nossas ruas, um exército de assassinos, que mesmo descobertos são misericordiosamente tratados pela nossa cândida Justiça.

Com a morte de dona Amélia, o gato fechou as portas no Arouche. Só foi reaberto anos depois, com novo formato. Da cozinha, ninguém pode reclamar. Garçons remanescentes da época de dona Amélia trabalham em outros restaurantes. A reabertura aconteceu depois que uma filha de dona Amélia veio da Itália para tratar em São Paulo, judicialmente, da valiosa herança da mãe. Havia um litígio. Normal isso por aqui, a ponto de existir um sábio provérbio forense assegurando: uma família só é suficientemente conhecida após a elaboração do primeiro inventário. É verdade. Mas, mas diante dessa realidade, nenhum gato conseguiria esboçar um sorriso.

Últimas

Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com oAviso de Privacidade.