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O assassino que ficou com medo do homem que matou

Arquivo Vivo|PERCIVAL DE SOUZA

Investigador de polícia fora do protótipo de um matador
Investigador de polícia fora do protótipo de um matador Investigador de polícia fora do protótipo de um matador

O comportamento de quem sabe que vai morrer é diferente um do outro. A reação de quem sabe que está prestes a ser executado é variável: é levado para um lugar isolado, retirado de um carro, ou obrigado a caminhar, sabendo que chegou a hora – não há como escapar da condenação sumária à morte.

Nos tempos do “Esquadrão da Morte”, porém, houve uma execução na qual o algoz, a partir do assassinato, passou a ser perseguido por um tormento, que aos poucos foi se transformando num terrível pesadelo, porque aquela caixa de segredos, escondida na consciência, mais cedo ou mais tarde faz as suas cobranças.

Foi exatamente o caso de Astorige Corrêa de Paula e Silva, o “Correinha”, investigador de polícia fora do protótipo de um matador: magro, baixinho, sempre visto andando com uma espingarda Winchester nas mãos, um terror no submundo do crime.

Ele mesmo me contou, numa surpreendente confissão, anos depois, como havia sido a razão dos seus tormentos, cena desenrolada numa noite sinistra: sua vítima, escolhida entre ladrões que infestavam a cidade, estava algemada com as mãos para trás e segura pela gola da camisa. Foi sendo empurrada até chegar ao lugar, ermo, escolhido. Outros policiais ficaram olhando, mais afastados, enquanto “Correinha” assumia o comando como carrasco. O condenado permaneceu impassível, calmo, indiferente, como se esperasse tranquilo o desfecho de tudo.

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“Correinha” surpreendeu-se. Estava acostumado a apertar o gatilho por várias vezes e a ver nos condenados como eram os momentos de pavor que antecediam a morte. Alguns se ajoelhavam, aos prantos, implorando para serem poupados. Outros urinavam nas calças. Alguns defecavam. As últimas reações fisiológicas mostravam o total descontrole emocional. Certos algozes sorriam. Um tipo de matador, sádico, exibia prazer erotizado.

Mas com aquele condenado foi algo inesperado. Ele se aproximou de “Correinha” e mirou-o bem nos olhos. Em seguida, abriu o peito arrancando com as mãos, desafiador, os botões da camisa, expondo o peito. Por fim, deu uma cusparada que atingiu em cheio o rosto do policial. Foi fuzilado, com muitos tiros. “Correinha”, limpando o rosto, ficou olhando para o cadáver daquele morto singular. A cena da cusparada nunca mais lhe saiu da cabeça. A catarse do condenado antes de morrer. A dignidade pré-execução. O destemor na hora de partir. A não aceitação da punição implacável. A certeza que que seu último ato em vida seria infringir ao algoz um instante fortíssimo de humilhação e, ao mesmo tempo, demonstrar desprezo e coragem.

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Pensei nisso tudo, sob vários ângulos, por muito tempo. A matança que tomou forma em nome de um “esquadrão da morte”, grupo de extermínio embrião das chamadas milícias de hoje, mas que procurava vestir-se com uma auréola de discutível profilaxia social (que tinha e tem adeptos até hoje), para encobrir o que de fato havia por trás de tudo: uma feroz disputa entre dois grupos rivais de traficantes, liderados por “Juca” e “Miroca. Alimentavam um poderoso setor de corrupção, banalizando a morte, como Hannah Arendt descreveria em seu livro o julgamento, em Jerusalém, de Adolf Eichmann, o carrasco nazista. Hannah revelou que, nos campos de concentração, Eichmann se comportava como um burocrata, certo de estar apenas cumprindo ”ordens superiores”. No caso do “esquadrão”, não havia nenhuma ordem superior alguma, e nem a banalização do mal descrita por Arendt, e sim um estímulo financeiro, patrocinado pela então Associação Comercial. E mais ainda as recompensas do próprio tráfico, até ser consolidada a supremacia de ”Juca”, que promovia pontos de encontro na pacata praça Olavo Bilac, na Barra Funda. Outra questão envolve o temor, ou destemor, no caso de “Correinha”, diante da aproximação iminente da morte. Segundo o que Voltaire, o filósofo francês, dizia no século 18, o ser humano seria o único a saber da chegada irreversível da morte, “e só sabe disso pela experiência”. Não é bem assim, sabemos hoje: existem animais com o poder do pressentimento da morte, entre eles os elefantes, que sabendo estar chegando a hora da partida, separam-se da manada para morrer em solidão.

O “esquadrão” matou muito em São Paulo, quase duzentas pessoas, de maneira individual ou múltipla, chegando ao desplante de possuir um “relações públicas”, delegado de polícia, que se apresentava por telefone, identificando-se como “Lírio Branco”, para informar aos repórteres plantonistas da antiga Central de Polícia, no Pátio do Colégio, onde “presuntos” haviam sido “desovados” linguagem hermética para indicar os lugares onde corpos de assassinados haviam sido abandonados.

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A existência do “esquadrão” coincidiu com a montagem de um Departamento de Operações e Informações, no antigo II Exército, para reagir aos ataques de grupos armados que pretendiam derrubar o governo, a ditadura. Mas isso é uma outra história, embora confrontos violentos tenham resultado em muitas mortes e desaparecimentos, numa brutal e suja guerra revolucionária, que marcou o Brasil com muito sangue derramado, no início dos anos setenta. Os combatentes, em ferozes lados opostos, mostravam-se convictos de que uma utopia pudesse ser adquirida pelo preço do sangue humano.

Houve, aqui, uma situação sui-generis: a importação do know-how da tortura para arrancar (a qualquer preço) confissões, com policiais civis e militares convocados por essa unidade do Exército, que funcionava nos fundos da 36ª delegacia, na rua Tutóia - um lugar infernal, embora o bairro onde ficava se chamasse Paraiso. Só que alguns personagens eram os mesmos, dentro e fora do DOI. A matança de marginais provocou reação do Judiciário e alguns membros do “esquadrão” começaram a ser identificados e processados. Eles nunca conseguiram entender: em nome da segurança nacional, uma doutrina, executavam sem ter que dar satisfações a ninguém; pelos assassinatos de marginais, vulgares diante de figuras expressivas, capturadas ou mortas, desabava o rigor da lei.

Aconteceu assim com Correinha”: julgado por um crime no Tribunal do Júri, foi condenado e levado para a Penitenciária do Estado, onde antigamente só havia população carcerária masculina. Viveu dias de muitos riscos, tendo de conviver com prisioneiros que havia torturado na Delegacia de Roubos do Departamento de Investigações, ou matado, como todos naquele ambiente sabiam. De policial a ex-policial, “Correinha” teve que aprender a andar na linha tênue que separa a vida da morte, como se houvesse um passaporte entre ambas.

Conseguiu permanecer vivo, até obter a liberdade, mas durante todo esse tempo de grande aflição na cadeia, uma única cena continuou a persegui-lo, como um fantasma, em sonhos e pesadelos, fazendo-o acordar ofegante, suado e assustado: a coragem do homem corajoso que, antes de ser morto, teve a incrível atitude de cuspir-lhe no rosto e abrir a camisa, à espera de tiros, como se estivesse a dizer, sem palavras: pronto, pode atirar, seu canalha.

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