A Igreja lotada, os convidados para o casamento alvoroçados, tudo cuidadosamente enfeitado com as mais belas flores, música sacra imponente, o padre pronto para a homilia histórica. De repente, tiros. O noivo cai morto no altar. O altar para a ministração dos sacramentos do matrimônio fica coberto de sangue. A noiva não escapa dos tiros, mas conseguiria sobreviver. O palco da tragédia, a Igreja Santa Teresinha do Menino Jesus, no bairro de Higienópolis, em São Paulo, acontecida no final dos anos 50, foi lembrada durante anos e anos pelo crime brutal – irracional, alucinado, incompreensível, enigmático para estudiosos e curiosos. O noivo era empresário. O assassino, médico psiquiatra. Buscaram-se respostas, na Polícia e no Manicômio Judiciário. Na poesia de Cassiano Ricardo: “Ou o pensar que a arte e loucura são flores diversas, num só ramo, como a lágrima é irmã gêmea do orvalho”. Profundas reflexões, aqui, porque o matador era médico e o terapeuta que cuidou dele no lugar reservado para insanos era seu contemporâneo de Faculdade de Medicina. Esculápio e Hipócrates não conseguiriam imaginar algo assim. No Manicômio, predomina um círculo que sai da órbita do castigo penal para refugiar-se na terapêutica compulsória, como escreveu o advogado José Fernando Rocha, no prefácio do meu livro “A revolução dos loucos”. A loucura levando ao crime? Ou o crime levando à loucura? O ser humano doente? Ou o doente criminoso? Amor platônico, apressaram-se alguns em definir, sem etimologia, como se o médico Abelardo amasse a professora Silvia secretamente, planejando matá-la no dia de seu casamento, quando uma delirante história de amor se tornaria definitivamente inverossímil. A tese não encontrou respaldo no elegante bairro de Higienópolis, visado por criminosos que adquiriram fama temporária, como João Acácio Pereira da Costa, o Bandido da Luz Vermelha, que entrou numa mansão da rua Bahia, acordou a senhora da casa e a empregada, obrigando-as a abrir um cofre, de onde recolheu dinheiro e joias. Antes de sair, beijou-lhes respeitosamente as mãos. O então cônsul-geral do Japão, Nobuo Okushi, foi sequestrado por terroristas na rua Piauí, em 1970. Dez anos depois, aconteceu no bairro o sequestro do empresário Washington Olivetto, na rua Minas Gerais. Em 1980, um partido político - o PT – nasceu no Colégio Sion, o lugar escolhido para as despedidas do colega Paulo Henrique Amorim. O crime na Igreja de Santa Teresinha precedeu a tudo isso. O empresário Silvio Marchioni marcou com cuidado a data do casamento com Silvia Pinto Sampaio. Os convidados eram muito especiais, as famílias da alta sociedade, o ambiente do mais puro bom gosto. O menino Jesus da Igreja é uma imagem que veio de Lisieux, na França, doação de uma senhora rica, Sofia Neves Torres. O sino da Igreja de Santa Terezinha foi presente do Conde Matarazzo, empresário ítalo-brasileiro. O altar central foi construído em mármore carrara. A bela imagem do menino mostra o seu rosto colado junto à mãe. A cena foi muito rápida, mas deu a nítida impressão de ter sido cuidadosamente ensaiada. O delegado Antenor de Castro Lellis, da 4ª delegacia, foi rigoroso e sintético no relato sobre as investigações. Deixou Platão de lado e, pragmático, foi aos fatos, como convém num bem feito inquérito policial. O imaginário poderia remeter ao escritor Robert Louís Stevenson, autor de “O Médico e o Monstro”, Dr. Jekill e Mr. Hyde. Havia uma roda de testemunhas perplexas à volta da cena do crime. Jekill do romance era um médico matador. Abelardo nada tinha da ficção gótica. Restou a percepção de vê-lo como um matador perigoso por natureza, um escorpião humano, movido por uma paixão assassina que girava em torno da professora Silvia. Afinal, o único monstro com licença legal no planeta é o do Lago Ness, na Escócia - assim mesmo, com licença concedida em caráter precário. Acontece, porém, que não existe o chamado criminoso monstro e nem o nato, com o preconizou Cesare Lombroso. O italiano foi questionado a tempo pelo criminologista Gabriel Tarde: “Lombroso foi como o café: não nutriu a ninguém, mas excitou a todo mundo”. Não se aprendeu até hoje: o Brasil é um dos países onde mais se mata em todo o mundo. Não é o tipo de crime que se previna, como dizem os curiosos que se intitulam “especialistas”. A explicação é simples: todos os assassinatos são interpessoais. Antes de morrer, o empresário Silvio ouviu uma frase cuidadosamente pronunciada, com palavras lentamente intercaladas: “Quero ser o primeiro a cumprimentá-lo”. A frase, nada de platônica, antecedeu os segundos em que o médico Abelardo tirou da cintura um revólver calibre 38 e atirou por quatro vezes no rosto do rival imaginário. Depois, alvejou a noiva também, mas não a atingiu mortalmente. No aglomerado e empurra-empurra durante os tiros e depois dos disparos, o médico Abelardo teve um dos olhos vazado por guarda-chuva. Sem preocupar-se com platonismo, mas em expor circunstâncias concretas, o delegado Antenor descobriu que na semana do Natal, já próxima ao dia marcado para o casamento, Abelardo mandou para Silvia um suporte de vidro, em forma de crânio, onde estava a inscrição: “Perdão, Senhor, se eu profano a sua obra”. Na pesquisa de antecedentes, o delegado descobriu que Abelardo já estivera num hospital para psicopatas, porque havia tentado matar o pai e o irmão. O médico Abelardo passou 22 anos preso – primeiro, na antiga Casa de Detenção; depois, no Manicômio Judiciário, em Franco da Rocha, ex-Juqueri. Por mais de duas décadas, Direito e psiquiatria travaram um duelo. Como se polícia e justiça fossem máquinas automáticas. A princípio, buscando definições entre imputáveis e imputáveis, isto é, aqueles que sabem muito bem o que estão fazendo e aqueles que são incapazes de se autodiscernir. Havia, na aplicação da pena, o chamado sistema “duplo binário”, quer dizer, imposição de uma pena e uma adicional medida de segurança detentiva, que prorrogava indefinidamente a dosagem inicial da pena. A medida de segurança poderia implicar em prisão perpétua. Alguns advogados, indignos de assim serem chamados, prefiram num julgamento sofrer a derrota, pois a aplicação da medida de segurança não seria considerada pena para o seu currículo profissional. Uma afronta ética e, por isso num presídio comum, os presos sentiam verdadeiro pavor diante da presença do psiquiatra, símbolo da prisão perpétua. Nesses tempos de pandemia, vejam-se nascedouros criminais como focos de infecção social. Precisaríamos sanear o contágio para evitar novos focos contagiantes. Como ensinou Von Lizt: “não se deve punir o crime, e sim o criminoso”. Ou seja: a máquina de punir, a engrenagem da persecução penal, não pode ser com a sanfona, que toca qualquer tipo de música, dependendo se o juiz ou o legislador for de esquerda, de direita, de centro... Abelardo foi à igreja e matou. Pensou bem, e com antecedência, sobre o que iria fazer. Não há o que se falar em “intenção”, as vazias “qualificadoras” que pretendem penetrar na mente assassina, traçando uma linha divisória entre “doloso” e “culposo”, pueril no cenário de matança predominante. Importam os resultados causados, não as intenções. Abelardo foi à igreja e matou um homem, no dia de seu casamento. A vítima morreu sem ter a menor ideia de por que estava morrendo. Abelardo teve o cérebro estudado à base de diagnósticos formulados entre perguntas, respostas e comportamentos. A jaula de 22 anos não foi suficiente para explicá-lo. Tudo explicita, cada vez mais, que há muitos Abelardos por aí.