O caso do menino Henry, o médico e o monstro
Arquivo Vivo|Percival de Souza, da Record TV
Ah, acreditaram em mim, Henry Borel, o menininho de quatro anos? Pois é, confirmou-se tudo, exatamente como contei o que fizeram comigo (confira a última coluna), e agora minha mãe eu padrasto foram presos, responsabilizados pelo meu espancamento e morte.
Eu sei, todos vocês perguntam: o que pode levar alguém a fazer isso? Vou tentar responder.
O personagem central da minha história é chamado por vocês de doutor Jairinho. Prisão temporária, trinta dias, quer dizer: Polícia, Ministério Público, Judiciário e peritos estão inteiramente de acordo. Fui barbarizado até morrer.
Jairinho... por que esse carinhoso diminutivo? Ele gostava muito de me bater. Quando eu passava o fim de semana com meu pai, não queria mais voltar para a casa da minha mãe. Sabia que iria reencontrá-lo. Mas o que eu podia fazer, senão chorar? Chorava bastante, vomitava, minha mãe dizia que era birra, parecendo preocupar-se mais com ele do que comigo.
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Ficava pensando no “tio Jairinho”, como fui induzido a chamá-lo. Então, procurei saber quem era esse titio forçado. Vereador e médico, fui informado. Fiquei a pensar. Vereador, nome que, pelo pouco que sei, significa “ver a dor”, isto é, interessar-se pela dor de seus munícipes, e como edil zelar por eles na Câmara Municipal. Além de pertencer ao poder que é o mais próximo do povo, o legislativo municipal, meu “tio” é médico. Soube que a medicina tem um pai ético, chamado Hipócrates, que desde os tempos quem usava aromáticos na Ilha de Cós, na Grécia, defendia o sagrado princípio de fazer de tudo para aliviar as dores. E de tudo para salvar a vida.
Estou seguro, imaginei ao morar com as figuras do médico-vereador. Com o vereador, percebi logo que ele não gostava exatamente de ver a dor, e sim causar a dor, provocá-la, submetendo-me a constantes sessões de agressões violentas. Virei “saco de pancadas”, como vocês costumam dizer, quando se referem a quem vive apanhando sem entender as razões.
Quem pode explicar isso? Quem é essa figura? Um monstro, vocês costumam dizer. Eu tenho dificuldades em separar o monstro, como face oculta da figura do humano.
Mas não é que vi um livro na estante que me despertou muita curiosidade? Seu título é “O médico e o monstro”. O autor é Robert Louis Stevenson.
O que tio Jairinho tem a ver com isso? Teria, posso deduzir, com as personagens principais da obra, doutor Jekill e mister Hyde. Por que? Porquê ambos simbolizam a maldade e a bondade, que poderiam alterar-se quimicamente – um soro pesquisado, produzido e injetado seria o responsável pelo que, no fundo, seria uma metáfora humana. O monstro, portanto, seria uma a criação, fruto de uma transformação provocada, proveta do monstro social.
Estou muito tentado a pensar nessa possibilidade para o meu “tio”. Se ele sentia prazer em me bater, e fazia isso às escondidas, porque só para inglês ver (como Stevenson) ele seria uma pessoa meiga e suave, é porque trazia dentro de si um sintoma que o levava a agir assim. Aliás, Hyde, a personagem de Stevenson, quer dizer “escondido” em inglês. Isso mesmo: o que ele fazia comigo era às escondidas. Coincidência? Não, é preciso procurar a história das barbaridades para reconstruí-la.
Foi incrível saber que mamãe e titio foram levados algemados para a delegacia e que o processo será julgado pelo Tribunal do Júri, que decretou a prisão de ambos. Esse tribunal é constitucionalmente soberano. O destino de ambos será decidido por um tribunal do povo, gente da sociedade, sete os escolhidos para julgar. Eles vão ouvir o que promotor e advogado tem a dizer, tomar conhecimento das provas, ouvir depoimento de testemunhas e o interrogatório de mamãe e “titio”.
Sei muito bem que vocês, que vão assistir ao desenrolar dos fatos e o próprio julgamento, estão pensando no que poderá acontecer.
Por parte dos dois, acho muito difícil que alguma coisa possa mudar. Fico com a impressão de que ambos fizeram um pacto, porque é impossível que minha mãe não soubesse o que houve comigo naquela noite. Pode ser que ele tenha se trancado comigo para me bater, chutando e socando, me arrebentando por dentro, provocando muitos ferimentos graves, descritos com detalhes pelos médicos legistas. É nesse ponto que minha profunda dor aumenta ainda mais: porque mamãe prefere proteger “titio” do que apiedar-se do próprio filho?!
Também acho que foi num ato de coragem, por parte dos dois, tentar explicar as lesões gravíssimas que sofri, como tendo sido provocadas pela queda da cama. Achei esquisito defenderem a ideia de acidente doméstico e ao mesmo tempo o advogado deles pedir para que a investigação fosse transferida para a Delegacia de Homicídios. A realidade do caso não sendo tratada como busca da verdade real. Tiro no pé, como vocês, adultos, gostam de dizer, pois não há compatibilidade alguma entre o que o casal diz e aquilo que as provas necroscópicas mostram e provam. Assim, o que poderia levar a Polícia a investigar como “acidente”, segundo a defesa, por um órgão da Polícia especializado em apurar autoria de assassinatos?
Para que eu possa ser considerado a grande e única vítima, os senhores jurados terão que ser informados se, além de nós três, haveria mais alguém no interior do apartamento. Ou seja: o local foi invadido? Alguma porta foi arrombada? Algum fantasma poderia ter entrado no apartamento sem ser percebido?
Se a resposta para essas perguntas fundamentais for “não”, não há com o refutar os raciocínios técnicos e testemunhais que levaram à prisão minha mãe e meu padrasto. Aliás, os dois ainda terão algumas surpresas. Uma delas é que espirrou muito sangue do meu corpo. Respingos foram parar na parede. Descobriu-se isso exatamente porque o apartamento foi interditado e periciado. Limparam muita coisa, mas essa prova não deu para apagar.
Stevens escreveu o romance que fala do médico e o monstro. Eu não queria, mas escrevi a história contando que personagens de ficção pode adquirir vida real. Agradeço as preces de vocês, a imensa solidariedade demonstrada por mim. Fiquem tranquilos: agora, finalmente, descanso em paz.
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