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O coronel da Casa dos Mortos

Arquivo Vivo|Percival de Souza

Massacre do Carandiru, em outubro de 1992
Massacre do Carandiru, em outubro de 1992 Massacre do Carandiru, em outubro de 1992

As lembranças macabras do real inferno de Dante na Casa de Detenção de São Paulo são emblemáticas.

Primeiro, porque tentou-se apagar por completo da memória a sua longa história, com a demolição pós-invasão que provocou 111 mortos em outubro de 1992, a dois dias de eleições municipais.

Segundo, porque o processo sobre o que aconteceu naquela tarde ficou devendo, e muito, no relato.

E terceiro porque o homem apontado como responsável por tudo, o coronel Ubiratan Guimarães, da Polícia Militar, primeiramente condenado a 632 anos de prisão pelo Tribunal do Júri, foi contemplado com anulação total do julgamento e absolvição plena pelo Tribunal de Justiça, a mais alta Corte estadual, por meio de seu Órgão Especial, composto pelos 25 desembargadores mais antigos.

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Vamos contar, agora, essa história por inteiro. Primeiro, quem foi Ubiratan. Segundo, porque ele foi para a Casa de Detenção naquela tarde. Terceiro, quem o convocou para ir ao presídio com a Tropa de Choque. Aos fatos, insofismáveis.

Coronel Ubiratan Guimarães
Coronel Ubiratan Guimarães Coronel Ubiratan Guimarães (SEBASTIÃO MOREIRA)

Conheci Ubiratan ainda capitão, muitos anos antes da Casa de Detenção. Foi galgando aos poucos os principais postos hierárquicos da corporação, com impecável folha de serviços. Não pode ser visto apenas pelo que aconteceu naquelas data. Seriam muito pouco para Bira, como era mais conhecido, e “Barra Zero” nas comunicações pelo rádio com o Copom, o Centro de Operações. Casou-se com a filha única do dono da fábrica de tapetes Tabacow. Separou-se e foi eleito deputado com 56 mil votos.

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Já deputado e absolvido em fevereiro de 2006, foi assassinado com um tiro de revólver na barriga, mesmo ano da absolvição, no interior de um apartamento nos jardins. Nos presídios paulistas, os presos comemoraram sua morte com um barulhento panelaço nas grades. Cerca de mil pessoas foram ao enterro, no Horto Florestal.

Foi o único coronel da PM a comandar simultamente o Comando de Policiamento Metropolitano e o Comando de Policiamento de Choque. Sua absolvição sumária pode parecer uma aberração aos olhos de quem não conhece bastidores e o conteúdo do processo. Falhas gritantes, praticadas pelo Ministério Público de então e o Poder Judiciário, também da época.

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MORTES ANUNCIADAS

A Casa de Detenção sempre foi um barril de pólvora, sempre pronto para explodir. Por ela, passaram diretores que souberam dirigi-la, criando regras nada ortodoxas que não estão escritas (e nem poderiam) em lugar nenhum. Exemplos: o coronel Fernão Guedes, respeitadíssimo: quando passava, os presos ficavam de pé, reverentes e com as mãos para trás.

Sempre acompanhado pelo temível Pedro Belegi, o “Galinha”, perigoso preso-assassino de sua máxima confiança, portando enorme estilete (o punhal da cadeia) na cintura, Guedes fazia uma preleção para os presos recém-chegados de cada dia. Dizia: ”Não me interessa o que vocês fizeram lá fora. Aqui dentro, quem quiser se endireitar, eu ajudo. Quem quiser se entortar, eu acabo de entortar”.

Outro diretor emblemático foi Luiz Camargo Wolffman, o Luizão, que se divertia caminhando pelo pátio e ao ver “Lotar”, um fortíssimo negro parecido com o personagem das histórias em quadrinhos, parceiro de Mandrake. “Lotar” exibia-se ao levantar uma pesada barra de halteres. Luizão colocava mais dez quilos nas extremidades, e subia os pesos. Os presos se curvavam respeitosos. Também lutava boxe com presos, frisando antes: “Aqui não tem preso e nem diretor, tem dois homens”. Vencia todos os duelos.

Teve ainda Luiz Philipe Borges, discípulo de Luizão,um dentista filho de pastor presbiteriano. Dirigiu o presído em tempos em que havia presos políticos, para os quais fazia palestras especiais, que começavam assim: “companheiros marxistas”...

Casa de Detenção do Carandiru
Casa de Detenção do Carandiru Casa de Detenção do Carandiru (ITAMAR MIRANDA)

Ainda José Ismael Pedrosa, o diretor no dia das 111 mortes que, ao aposentar-se, foi morto por uma saraivada de tiros, dentro de seu carro, em outubro de 2005, em emboscada feita por bandidosdo PCC, na cidade de Taubaté.

Por tudo isso, nasceu na Detenção o embrião da estrutura do crime organizado. Antes do PCC, surgiu o grupo “Serpentes Negras” - a origem do poder interno, antes tão impensável quanto inútil, mas ao começar dando ordens para bandidos fora dos muros, tornou-se domínio real, transformando o Estado em mero coadjuvante. Tanto que passou a ser uma mãe-prisão, geradora de muitos filhos.

Por que eu sei de tudo isso? Porquê conheci a Casa de Detenção nas palmas das mãos. Cheguei a ficar quase um mês lá dentro para escrever o livro “A Prisão - histórias dos homens que vivem no maior presídio do mundo”. Histórias terríveis, mas o presídio continuou o mesmo. Direitos humanos? Esqueça. OAB? Uma amnésia caiu bem. Intelectuais? Nada de nada. Deputados? Negativo. Ativistas? Zero. Como assim, ninguém?! Positivo, ninguém.

O coronel Ubiratan não tinha nada a ver com isso, mas a herança maldita caiu-lhe nas mãos, numa somatória de hipocrisia, cinismo, indiferença e descaso. Um juiz-corregedor, dos presídios, Renato Laércio Talli, chegou a impor, diante da omissão geral, um limite de 6 mil presos, diminuindo a lotação de 7.500. Para isso ser possível, determinou a ocupação dos distritos policiais.

Foi necessário criar um novo departamento, Dacar – Departamento de Assistência Carcerária – para a administração da Polícia Civil. Um paliativo, porque aos poucos as delegacias passaram a ter um número de presos equivalente ao da Casa de Detenção. Para dar uma satisfação moral, o Governo decidiu implodir o presídio, como se isso pudesse remover da História as atrocidades ali cometidas ao longo dos anos.

BANHO DE SANGUE

No dia sinistro, houve uma briga entre presos, armados de punhais, no pátio do pavilhão 9. A Polícia Militar recebeu pedidos e autorização para entrar: do diretor, José Ismael Pedrosa, e dois juízes que faziam visita correcional, Ivo de Almeida e Fernando Torres Garcia. Ou seja: Ubiratan Guimarães não convocou a Tropa de Choque porque quis ou porque estivesse entediado naquela tarde de sexta-feira.

No morticínio, presos nús carregavam os corpos dos fuzilados, cheios de furos, ensanguentados. Alguns agonizantes, sem socorro. Ficaram empilhados por muito tempo, até terminar a confecção de miseráveis caixões de madeira.

Mas por que a absolvição de Ubiratan? Porquê, na gana de caça aos culpados, foram cometidos erros juridicamente crassos. Vejamos quais foram:

1-) Quando a tropa chegou ao Pavilhão 9, tambores de querosene foram lançados em chamas, rolando nas escadarias. Mais de mil aparelhos de TV estavam nas celas. Um deles, ao ser lançado, explodiu o tubo nas proximidades do coronel, que desacordado foi levado ao pronto-socorro mais perto dali, na Rua Voluntários da Pátria. Ubiratan, ícone da tropa, deixou-a ensandecida nesse momento. A invasão, sem o comandante, foi feroz;

2-) Como Ubiratan poderia responder pela autoria de 111 assassinatos se não disparou um único tiro e nem estava no presídio na hora da invasão?;

3-) É elementar, no júri, que qualquer acusação seja individualizada, ou seja, que se estabeça quem matou quem;

4-) As armas apreendidas com os policiais que participaram da ação não foram submetidas a exame balístico, tornando impossível provar as autorias. Tudo isso levou o relator do processo, desembargador Ivan Sartori (ex-presidente do TJ), a concluir, com endosso dos pares, que “não houve massacre; houve legítima defesa”;

5-) A acusação atribuiu a Ubiratan uma “voz de comando”. Essa figura só tem previsão no Código de Processo Penal Militar, e não na Justiça comum, responsável – desde a Constituição de 1988 – para realizar todos os julgamentos em casos de homicídio doloso. Também não havia provas de que ele tenha dado qualquer tipo de ordem.

Falha geral: passou juridicamente batido que um júri anulado obriga a realização de novo julgamento, até porque os desembargadores conseguiram o milagre de entrar na mente dos jurados para acreditar que tenham se enganado ao responder os quesitos formulados. Assim foi, assim é, assim será considerado.

Não há mais o que discutir. Os crimes estão prescritos. Não haverá mais julgamento. Ubiratan está morto. Mortas estão também as teorias daquele lugar, que sempre foi um cemitério de poesias.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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