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O fim dos manicômios

Fim da internação, com encarceramento, de criminosos portadores de transtornos mentais é o ápice do movimento antimanicomial

Arquivo Vivo|Por Percival de Souza, da Record TV

Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico em Franco da Rocha, São Paulo
Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico em Franco da Rocha, São Paulo

Está decretado: os manicômios judiciários vão acabar. As datas já estão marcadas: esvaziamento, a princípio, em maio do ano que vem, no máximo. É o que diz a resolução 487 do Conselho Nacional de Justiça, viabilizada pela lei 10.216. É o ápice de um movimento antimanicomial, para não mais internar, com encarceramento, os portadores de transtornos mentais que cometeram crimes. Será ótimo, dizem alguns. Péssimo, afirmam outros. Todos se apresentam como especialistas, mas sem denominador comum.

O que fazer com esse tipo de criminoso? Eis a questão. Se, como se pretende, se transferi-los para unidades públicas de saúde, é evidente que o sistema oficial não possui condições de recebê-los. Se a ideia é colocá-los de volta ao convívio familiar, pode ser perigoso e com riscos potenciais à sociedade. Uma lei que se faz e não se cumpre? Talvez. Não existe consenso. Grupos defendem, grupos atacam. Quem tem razão? A resposta tem que ser científica. Aguarda-se.

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A linguagem adotada a respeito por especialistas, para que toda a sociedade saiba do que se trata, mostra-se até aqui sem capacidade suficiente para que todos possam entender o assunto com clareza, de forma inteligível e compreensivelmente persuasiva, de tal modo que convença a todos. Procura-se um editor de textos.


Tanto isso é verdade que, ao longo da história, tivemos muitos mitos e até algumas falsidades escritas, descritivas. Fato: há certos tipos de criminosos que atormentam, angustiam e apavoram a sociedade. O que ataca sucessivamente. O que demonstra prazer em matar. Aquele que parece alegrar-se com o sofrimento da vítima. O que utiliza métodos horripilantes. O que dilacera corpos de maneira cruel e inimaginável. O que, mesmo depois de tudo isso, é posto em liberdade e volta a fazer exatamente o que já tinha feito. O que leva todos a se perguntarem: como um ser humano é capaz de chegar a esse ponto?

Tais perguntas exigem respostas convincentes. Na voz do povo surge a expressão de repulsa e indignação: “Quero que o autor apodreça na cadeia”; “Esse aí não é gente, é um monstro”. A lei usa expressões nem sempre compreensíveis para identificar tais tipos. O “imputável” entende perfeitamente o que foi capaz de fazer. O quase imputável é capaz, mas não o suficiente, fronteiriço, de saber o que está fazendo. O “inimputável” não tem capacidade alguma de discernimento.


Assim, nossa legislação trafega indefinida entre essas opções, até fazer uma das escolhas. Se o autor de determinado tipo de crime exibe comportamento duvidoso, com amostras de insanidade mental, o juiz do caso pode requisitar um tipo de exame para que essa avaliação seja feita. O magistrado não precisa ficar condicionado a tais laudos, pode até discordar frontalmente, mas a maioria tem preferido concordar com o psiquiatra.

No túnel do tempo, conhecemos variantes. É a psiquiatria forense. Antigamente, por exemplo, imperava o sistema chamado "duplo binário", isto é, aplicava-se a pena com acréscimo de uma medida de segurança detentiva. Na prática, a pena imposta era cumprida, e depois o condenado continuava internado, até que o psiquiatra entendesse que estava "cessada a periculosidade", equivalente a manusear uma bola de cristal futurista, capaz de prever (ou adivinhar...) o que eventualmente estaria por vir.


Tal sistema foi vencido pela ineficácia. Optou-se, então, por escolher entre uma coisa e outra. Assim, aplica-se a pena ou ela é substituída por medida de segurança, sempre detentiva, deixando-se de aplicar as duas simultaneamente. Esse é o modelo vigente.

Enquanto isso, a voz popular sempre preferiu usar outras expressões para esse tipo de descrição de personalidade. Por exemplo: “xarope”, “noia”, “doido”, “louco”, “louco de pedra”, “treze” (número usado para definir ocorrências policiais, assim codificadas), “maluco”, “matusca”, “matusquela”, “pinel” (referência ao nome de um antigo psiquiatra francês do século 17, Philippe Pinel), “parafuso a menos” e dizer que “de louco todos temos um pouco”. Expressões vulgares, mas de largo uso pela população. Os mais sofisticados gostam de definir práticas criminosas como “tresloucado gesto”.

As origens

A tudo isso, junte-se a chamada psiquiatria forense, em vigor, teoricamente capaz de avaliar um certo tipo de criminoso praticante de atos aterradores, humanamente inexplicáveis. Nesse caso, o juiz nomeia um perito, a defesa do acusado pode, se quiser, indicar mais um, e, desse modo, o magistrado firma a sua convicção.

Francisco da Costa Rocha, o Chico Picadinho
Francisco da Costa Rocha, o Chico Picadinho

No meio desse tortuoso caminho, repleto de pedras bem diferentes, surgiu um grande receio de elaborar laudos. Isso porque muitos sentenciados, diagnosticados com transtornos mentais, foram postos em liberdade e voltaram a praticar o mesmo tipo de crime.

Isso aconteceu, entre vários exemplos, com Francisco da Costa Rocha, que recebeu na prisão o apelido de “Chico Picadinho”, por ter esquartejado uma mulher num apartamento da rua Aurora, em São Paulo. O cenário tornou-se dantesco. A psiquiatria forense chegou a ficar com medo dela mesma.

A história pode ajudar na busca para decifrar enigmas humanos. O escritor, filósofo e teólogo Erasmo de Roterdã escreveu Elogio da Loucura. Pode parecer estranho, mas o holandês, estrela do Renascimento, argumentava: “O sábio é aquele que vive de acordo com as regras da razão prescrita, e o louco, ao contrário, é o que se deixa arrastar ao sabor de suas paixões”. Portanto, mais paixão, dizia, do que razão. Não se está falando de criminoso, reforça Erasmo: “Não haveria diferença alguma entre os sábios e os loucos, se não fossem mais felizes estes últimos”. Após escrever isso, Erasmo o pontificou durante a Reforma Protestante, de Lutero, que avançava na Europa. Mais paixão do que razão, pregava.

Fato é que, no decorrer dos tempos, os manicômios se transformaram em depósitos humanos. No caso do Juqueri, em São Paulo, predominava a psiquiatra repressiva: considerava-se insano no presente aquele que assim dera entrada no lugar. Os laudos eram repetitivos, padronizados, e os diagnósticos, feitos a toque de caixa. Ressalte-se, porém, o trabalho do primeiro professor de neuropsiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, Franco da Rocha, precursor do tratamento humanizado, no Juqueri, prédio construído pelo arquiteto Ramos de Azevedo em 1898. Rocha, inovador no tratamento dos pacientes, estimulava o contato com a natureza e a fauna local. Até os nomes foram mudando. Aboliu-se “hospício”, “doentes mentais”, “insanos” — utilizando-se de sinônimos para caracterizar comportamentos.

Some-se ao sistema o psiquiatra italiano Cesare Lombroso, com sua teoria do “criminoso nato”, atávico, expondo as características morfológicas com aspectos físicos reveladores. A tese excitou muita gente, mas não se nutriu cientificamente. Tivemos Nina Rodrigues, fundador da antropologia criminal no Brasil. Cabeças degoladas de Antonio Conselheiro, na Guerra de Canudos, e de Lampião, o rei do cangaço, e seu bando foram por ele examinadas e expostas na primeira Faculdade de Medicina do Brasil, em Salvador (BA). Um grande incêndio, em 1905, consumiu as cabeças e as teorias.

Temos, ainda, o poema satírico “A nau dos insensatos”, de Sebastião Brant, transformado em filme. Um “navio dos loucos”, como ficou conhecido, navegava sem que os passageiros, todos problemáticos, se importassem em saber aonde iriam. Não se pode esquecer de Michel Foucault, o psiquiatra francês, que em seu Vigiar e Punir, traça uma metáfora sobre a consciência do pecado e do mal.

E agora? Basta abolir? O que pôr em seu lugar? Generalizar ou continuar com exames individuais? Conversas terapêuticas são suficientes? O psiquiatra pode ser enganado pelo paciente? Como distinguir doente criminoso do criminoso doente? Não sabemos. Com exatidão, muito menos. A luta antimanicomial venceu. Mas precisará continuar vencendo. Sobre os presos, 70% reincidentes, já se pensou de tudo, inclusive mandá-los para um ponto distante, no mar, ou o interior longínquo de uma selva. Na recuperação pelo trabalho, a laborterapia. Na prisão perpétua. Na pena de morte. 

A sociedade está olhando. E continua à espera.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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