As coisas continuam nebulosas em matéria de segurança pública: conforme indica a mais recente pesquisa do Instituto Atlas, nada menos do que 60% das pessoas entrevistadas disseram que consideram a criminalidade como o maior problema nacional e o crime organizado o grande inimigo dos brasileiros. E não é verdade? Claro que é. As respostas traduzem os sentimentos de todos nós. Elas transmitem a dominante sensação de insegurança: o medo, o receio, o pavor de um ataque aterrorizante, materializado em invasão de residências, assaltos a motoristas e transeuntes, os bandidos que atiram primeiro e dizem o que querem depois, sempre depois do berro “perdeu”. Esse “perdeu”, na linguagem dos criminosos, quer dizer que eles venceram, que você não escapou nem vai escapar, e a partir daí as consequências serão inevitáveis: agressões, mortes, traumas difíceis de superar. A situação, dominante em várias cidades sob esse domínio criminoso, teria que ser enfrentada como deve. Questão principal: quem é que vai enfrentar esse tipo amedrontador de criminosos, que roubam, furtam, matam, estupram, causam lesões gravíssimas, atiram, esfaqueiam, ameaçam e intimidam? Excelente pergunta. Não respondida. Mais uma vez é discutido o tema de existir um ministério próprio para esse assunto. Assunto em pauta mais uma vez. O ministério atualmente existente, acoplado ao da Justiça, vai deixar um espaço a ser preenchido, com a indicação do atual ministro para o Supremo Tribunal Federal. Com um detalhe que, como sempre, passará batido: toda a Corte vai receber um carro zero- quilômetro, novinho em folha, e blindado. Quer dizer: os ministros precisam se locomover em segurança, sem correr maiores riscos, exatamente o que gostaríamos de desfrutar em nosso cotidiano, de trabalho ou lazer. Exatamente aí é que a coisa pega. Você acaba de ler, sem tirar nem por, o status quo atual. Como reverter esse quadro, repleto de assassinatos, crimes sexuais, feminicídios e um desfile abarrotado de atores na sinistra passarela do cardápio penal? Lamentavelmente, para nós, a sociedade, as perspectivas não são animadoras. Primeiro, porque a concentração do tema no Planalto não corresponde à planície dos 27 estados brasileiros. Cada estado tem autonomia para decidir quem vai ser o secretário da Segurança Pública e os respectivos chefes de polícia, ou seja, o delegado-geral da Polícia Civil e o comandante-geral da Polícia Militar. Exceção só aconteceu durante os anos de chumbo, quando em 1969 o poder militar unificou na Polícia Militar, a ex-Força Pública, todas as corporações uniformizadas. O embrião da Polícia Federal foi o Departamento Federal de Segurança Pública. Além disso, o titular da pasta era sempre um militar, coronel ou general. No caso de São Paulo, o general João Batista Figueiredo, na PM, que seria futuramente presidente da República, e secretário o coronel Erasmo Dias. E agora? Os anos de chumbo carregam uma pecha para os dias atuais. Anos passados ainda repercutem nos dias atuais, embora a geração atual de militares e civis nada tenha a ver com os tempos do arbítrio institucional. Este é um equívoco, entre outros. Mas um deles parte exatamente dos que se dizem “especialistas” na área e, na verdade, não são. Vejamos o que está acontecendo: primeiro, sugeriram ao governo federal que, consequência da operação conjunta das Forças Armadas, o crime organizado teria “acabado” no Brasil. Óbvio que não acabou. Só não vê quem não quer. Além de confundir eventuais diretrizes federais que não atingem as realidades locais e, repita-se, não haver adequações para os formatos de crime diferentes. Exemplo recente é do Rio de Janeiro, onde o governador extinguiu a Secretaria da Segurança e criou outras duas, da PM e da Polícia Civil. Não deu certo. O governo voltou atrás, porque uma coisa é a lógica diária, terrível no Rio, e outra as teorias inúteis dos palpiteiros, sempre à espreita, embora distantes do real. Há muito mais, porém: quem deveria tentar resolver o desafio? Procura-se. Mas parece que não querem encontrar. De novo, fala-se na escolha de um “jurista”. Mas quem disse que a polícia é algo a ser embrulhado com papel-celofane, para dar a impressão de que o comando está em mãos de alguém impoluto? São Paulo já deu a prova de que nada disso funciona: passaram pela pasta desembargadores, juízes, advogados e professores. Inútil, porque não eram o que se pretende agora: “operacionais”. Nessa pretensão, excluem por completo a polícia, sempre ignorada pelos projetos mirabolantes e tratada com desconfiança e genéricos preconceitos rancorosos. Uma equivalência: seria como fazer um planejamento hospitalar sem consultar os médicos e os técnicos em enfermagem. Chega a ser ridículo. Só que esse ridículo descamba para a sociedade transformada em cobaia de teses que não funcionam. Saiba quais são as últimas: dizem os líricos que nada mais se pode fazer pelo meio da “lógica policial”. O pensamento obtuso nada tem de lógica, até porque, por força constitucional, a Polícia Civil investiga e a Militar cuida do policiamento preventivo, ostensivo e preservação da ordem pública. A tarefa não é para freiras ou escoteiros. Se não deve prevalecer a “lógica policial”, como começam a reivindicar os apedeutas no ramo, leva-se em consideração o inevitável: sem Polícia Civil não existiriam inquéritos policiais apurando autorias nem prevenção do crime, pois a PM é a única que faz patrulhamento ostensivo. Ambas, Civil e Militar, alimentam o Ministério Público, porque sem oferecimento de denúncia não existe processo criminal. O juiz, depois desse ritual, decide. Um come no prato do outro. Sendo assim, e é, a “lógica policial”, que se pretende abominar, é mais do que abrangente, porque faz parte de todo um sistema, sem o qual a sociedade estaria perdida. Elucubram os palpiteiros, ainda, que a política não deve se imiscuir na polícia. Isso é certo, já se pensou nisso desde o nascimento da Scotland Yard. Só que aqueles que usam esse tipo de discurso são vinculados a partidos e ideologias. Para eles, mandar na polícia é um prazer erotizado, que nem Freud conseguiria explicar. Ou seja: são contraditórios nos próprios argumentos. A sociedade corre o risco de ser cobaia mais uma vez. A cegueira deliberada é tese jurídica, que quer dizer: você vê, mas faz de conta que não vê, e decide mesmo sabendo que a sua escolha não é a correta. O beco tem saída, mas não querem vê-la. É absurdo admitir que certas regiões sejam “dominadas pelo tráfico de drogas”. Ou que em muitos lugares “quem domina é o crime organizado”. Isso é falência, é colapso. O sistema de persecução penal ainda possui vulnerabilidades espantosas no Judiciário, Ministério Público e sistema prisional. Destaque-se que esse sistema consome uma fortuna em verbas, soma que é dividida pelo número de capturados, punidos e aprisionados, mas apresenta resultado muito aquém do esperado e uma diferença brutal entre custos e benefícios. Que fazer? Penso que para ocupar certos cargos na magistratura, por exemplo, é exigido o clássico “notório saber jurídico”. Ótimo, embora nem sempre seja assim. Façamos o traslado semântico para a segurança pública: para ocupar determinadas funções, tanto para executar como para opinar, deveria se exigir, do mesmo modo, o mesmo “notório saber”. Diante do notório fracasso, o que você acha?