O oficial da Rota com medo de encontrar o irmão bandido
A Rota, que tem suas faces ocultas conhecidas por muito pouca gente, já passou por várias mudanças ao longo das décadas
Arquivo Vivo|Percival de Souza
Caim e Abel, um bom outro mau, a história está contada no livro de Gênesis. Mas que vou contar agora não está escrita em lugar nenhum: um oficial, linha de frente da Rota, a tropa de um batalhão especial da Polícia Militar, o 1º do Comando de Choque, implacável com bandidos, dos quais se considerava destemido caçador, tinha um irmão linha de frente, mas do crime. Bandido mesmo.
Todos os dias, naquele ritual de viaturas circulando no pátio do quartel da avenida Tiradentes antes de sair em barulhento comboio, ele rezava antes de cruzar o portão do casarão amarelo, suplicando a clemência divina para não se encontrar com o irmão. Seria um inevitável duelo fatal.
Sei disso porque fui merecedor de uma confidência, e sendo assim não posso ver revelar quem é. Ética é isso. Mas sei da angústia que a situação provocava e a última coisa na vida com a qual ele não queria se deparar era essa. O imaginário fervilhava emoções: matar? Morrer? Que fazer?
As preces foram parcialmente atendidas. O oficial não se encontrou com o irmão. Mas seus parceiros da Rota, sim. Tiros, revide, mais tiros. Irmão morto. Pelo rádio, o oficial soube da ocorrência, à qual os policiais se referem sempre como “entrevero”. Foi ao local. Viu o irmão ensanguentado, crivado de balas. Ficou olhando demoradamente. Só ele poderia descrever o que estava sentindo naquele momento. A confidência não chegou ao detalhamento.
Confidente pede opinião sobre o drama ao confessor. Apelei para o filósofo Heráclito, de Éfeso, por onde também peregrinou o apóstolo Paulo. Estive em Éfeso, ex-Grécia, hoje Turquia, da qual restaram ruínas. O pensamento de Heráclito, que viveu cinco séculos antes de Cristo: nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, também o homem”.
O rio do oficial confidente era o mesmo que o irmão. Comprimido pelas margens, teve cursos alterados. Continuou assim nos caminhos da vida. Paradoxo não único, porque essa vida pode produzir situações semelhantes, com extremos ou não. Anos depois, eu veria o caso de um investigador de polícia entrar no prédio do Deic, o departamento da Polícia Civil de combate ao crime organizado, dirigir-se à sala do irmão, delegado de polícia, e matá-lo a tiros. Autuado em flagrante na Corregedoria, disse que tinha raiva do irmão porque ele recebeu uma parte maior na herança deixada pelo pai.
O quartel da Rota, patrimônio histórico, possui muitas histórias não contadas. Esta é uma delas. Há outras, carregadas de dramaticidade. A localização do quartel já foi estratégica. Um túnel secreto ligava ao antigo Palácio do Governo do Estado, na avenida Rio Branco, e só foi descoberto com as obras de construção do metrô. Hoje o túnel é atração turística, e pode ser percorrido em visita agendada.
Vou contar mais algumas. A Rota nasceu no começo dos anos setenta, criada pelo coronel Erasmo Dias, secretário da Segurança, simultaneamente com o Garra, do Deic. A ideia: atendimento rápido das ocorrências — Rota para o enfrentamento, Garra para investigação. Logo a Rota de destacou com eliminação física. Erasmo gostou da letalidade: da verba de seu gabinete, retirava quantias para premiações incentivadoras nas mortes em confronto.
A Rota fortaleceu-se. Passou a ser usada em campanhas políticas, promessas de “Rota nas ruas”, embora ela nunca tenha saído delas. Quando Franco Montoro assumiu o Governo estadual de São Paulo, duas coisas foram decididas: acabar com o Dops, a temível polícia política, e deixar sem nenhuma função o seu diretor, Romeu Tuma. Romeu foi ao presidente João Batista Figueiredo, que como coronel havia comandado a Polícia Militar de São Paulo. Virou superintendente da Polícia Federal na capital paulista e levou para lá os arquivos do Dops, onde permaneceram por longos anos. Ingênuo, portanto, pretender encontrar segredos em tais arquivos. Foram lentamente destruídos. No dia da posse de Romeu na PF, houve um incêndio no quinto andar do Dops, onde funcionava o Serviço Secreto. Entendeu?
E a Rota? A PM bateu o pé e ela não acabou. O secretário da Segurança de Montoro, professor Manoel Pedro Pimentel, contudo, anunciou que iria “colocar um cabresto na Rota”. Pegou mal na tropa. Pimentel pensou, pensou, e decidiu: foi ao quartel da Tiradentes, e com a tropa formada no pátio, pediu desculpas. O gesto de humildade, raro, cativou a Rota, que seguiu em frente. Hoje, mesmo aqueles que a questionam gostam de chamá-la de “tropa da elite”. Dão a impressão de que não sabem o que pretendem dizer.
Conheci outro caso do tipo oficial com o irmão. A Rota cercou um prédio, no centro da cidade, onde um perigoso assaltante se entricheirava. Na troca de tiros, o bandido foi morto. Dias depois, o irmão dele, o lutador de boxe Maguila, foi ao quartel da Rota e pediu ao comandante, Hermes Bitencourt Cruz, para saber em detalhes o que havia acontecido. O tenente-coronel contou. Maguila, peso pesado, ouviu em silêncio. O irmão era mesmo da pesada. Tomou um café e retirou-se agradecido.
A Rota não é a mesma de quando nasceu, sob comando do tenente-coronel Salvador D’Aquino. Hoje, comandada por Melo Araújo, também tenente-coronel, filho de coronel, é mais flexível. Continua sendo usada politicamente. De “Rota na rua, bandido na cadeia”, slogan malufista, promete-se agora desmembrá-la pelo interior. Impossível. É uma questão de efetivo. Doutrina Rota, tipo Baep, Batalhão Especial de Ações Especiais de Polícia, é outra coisa.
Duas revelações finais, porque não se importa muito em procurar saber como fica o policial militar depois dos entreveros, isto é, os deslocamentos em alta velocidade, sirenes ligadas, o enfrentamento diário com bandidos perigosos, mortes, ferimentos, angústia, pesadelos, medo, traumas, reações psicológicas. Não é fácil para um ser humano administrar tudo isso. Não são robôs.
Conheço um deles que adquiriu hábito estranho, que incorporou ao dia-a-dia. Em casa, à noite, apaga as luzes da sala e senta-se no escuro em frente à porta da entrada, sempre com uma arma no colo. Parece que está à espera de alguém, uma vingança, um ataque traiçoeiro.
Eles sabem que não se pode duvidar de nada. Um ex-comandante de companhia da Rota, Coura, sempre levava uma arma escondida no porta-malas do carro. Imaginava que se um dia fosse dominado, seria colocado lá dentro e assim surpreenderia os bandidos. Mas um bandido o surpreendeu fazendo cooper: correndo, aproximou-se e matou-o com um tiro na cabeça, à vespera de ser promovido a coronel e assumir o oitavo Comando de Policiamento de Área Metropolitana, em Osasco. O assassinato nunca foi esclarecido.
Outro também fez algo esquisito. Ensinou um papagaio a pronunciar algumas frases. Quando chega uma visita, o papagaio grita: “mão na cabeça, vagabundo!”. Pela casa, armas ficam escondidas em vários pontos: lustre da sala, vasos de samambaias, debaixo de tapete, dentro de forno micro-ondas na cozinha e panelas. Se alguém entrar...
Por último, o que mais me intriga: parece querer purgar alguma coisa. Sai às ruas com um carrinho de hot-dog e distribui sanduiches e refrigerantes para crianças carentes. E à noite para servir sopa e distribuir cobertores para mendigos.
Esta é uma das faces ocultas da Rota. Conhecida de poucos, muito poucos.
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