O promotor que matou a tiros a mulher grávida
O caso complicado que aconteceu em Atibaia e que envolveu uma advogada e seu marido, um promotor de Justiça
Arquivo Vivo|Percival de Souza
As vozes clamaram indignadas diante de mais um assassinato brutal: dentro de um condomínio, na cidade de Atibaia (SP), uma advogada de 32 anos foi morta com dois tiros, um na cabeça e outro nas costas, dentro de uma caminhonete. O marido estava no carro, como ele mesmo contou, e saiu caminhando por uma estrada, até três quilômetros de distância, pedindo socorro num posto da Polícia Rodoviária.
Aos poucos, as investigações foram se aprofundando, até porque os personagens do caso eram socialmente importantes. A mulher, uma advogada, grávida de sete meses. O marido, promotor de justiça. Estavam juntos na caminhonete, quando — ele dizia — de repente apareceram dois bandidos armados, dos quais ele fez minuciosa descrição. Um suspeito chegou a ser preso. Nada tinha a ver.
De assalto, como contava o promotor, as coisas foram caminhando, pouco a pouco, para homicídio. Não está nos autos, mas conto agora: o delegado de polícia da cidade mandou investigadores verem tudo digno de ser observado no local do crime. Eles voltaram relatando que o vigia noturno do condomínio, fazendo ronda pelo condomínio, havia visto, no escuro, o assassino em fuga. O delegado mandou buscá-lo imediatamente.
O promotor Igor Ferreira da Silva estava na delegacia. Contava como os bandidos interceptaram a caminhonete Dodge, gritando que era assalto, os dois tiros seguintes (cápsulas de uma pistola 380 foram encontradas no local) e ele, aturdido, andando para a estrada, embora houvesse posto de vigilância dentro do condomínio.
Quando o vigilante da noite entrou na delegacia, deparou-se com Igor. Passou a gritar, apontando incisivamente para ele, e gritando: “é ele! é ele”! O delegado imediatamente colocou os dois em salas separadas. Primeiro, quis saber do vigia como tinha tamanha convicção. O vigia explicou que o farol da sua moto estava aceso e por isso o foco de luz bateu bem em cima do rosto de Igor, o que levou a não ter nenhuma dúvida sobre o que estava afirmando. O delegado mandou o escrivão tomar o seu depoimento e retirou-se para a sala ao lado, onde estava Igor.
Bem ao lado dele, delegado mirou-o profundamente. Ambos eram contemporâneos de Faculdade de Direito. Igor não olhava nos olhos do delegado. Mantinha a cabeça quase totalmente baixa. Depois de alguns minutos de silêncio, o delegado fez uma pergunta fulminante: “que merda você fez?!” Exatamente isso, ipsis verbis, como dizem os doutos.
Em vez de responder, enterrou a cabeça entre as mãos, e assim longamente permaneceu, como se ali não se reencontrassem dois colegas de Faculdade — um, delegado encarregado de apurar o crime, e o outro promotor, para o qual apontavam significativos indícios de autoria.
Subjetivas as reações do vigia noturno e do promotor, é o que poderia ser dito com o de fato iria se dizer. Como, um promotor, o titular da ação penal, o fiscal da lei, poderia ser o autor de um homicídio para lá de qualificado? Investigações profundas, bem feitas, levam em considerações os fatos e subjetividades. Podem, sim, ajudar a firmar juízos de convicção. Elementar, meu caro Watson. As histórias contadas por Igor não eram nada convincentes.
O fecho contra o promotor foi se ampliando. Tudo apontava para ele, saindo para a estrada, parando num posto da Polícia Rodoviária, deixando a mulher morta para trás? Difícil mesmo de acreditar. Um bom advogado criminalista, e Igor logo recorreu a um deles, deve recomendar ao cliente que nunca minta para ele, embora possa mentir (e como mentem) para os outros.
Mas por que o promotor Igor Ferreira da Silva mataria a advogada Patrícia Aggio Longo, 32 anos, quase metade de idade a menos do que ele? Deveria haver alguma razão para um deles, casados após romance de Faculdade, na classe onde ela era aluna e ele professor. Por que? A pergunta martelava na cabeça do delegado.
Nessa etapa da apuração do crime, me aconteceu uma coisa surpreendente. Fui procurado pela mãe da advogada Patrícia Longo, formada em psicologia pela Universidade de São Paulo, que me disse, de forma peremptória, que não acreditava, de jeito nenhum, que Igor pudesse ser o assassino de sua filha. Jamais. “Só acredito se Igor me olhar bem nos olhos e dizer: fui eu quem matou”. Maria Cecília me comoveu. Mas não me afastei um milímetro do pragmatismo investigatório.
Foi então que a defesa de Igor, prevendo o inevitável, isto é, que o promotor seria responsabilizado criminalmente, engendrou uma tese para o futuro: o filho que Patrícia gestava no ventre era com provadamente dele, não haveria nenhuma razão para ciúmes ou suspeita de traição. Foram requisitados exames de DNA, nosso código genético, para a Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. O corpo de Patrícia foi exumado. Os tubos de ensaio revelaram o que a defesa jamais poderia esperar: o filho por nascer não era de Igor. Incompatibilidade total.
Tiro no pé. 0u pela culatra. Um argumento a mais para a promotora Valderez Abbud, escolhida pelo Ministério Público para fazer a acusação. Igor continuou negando. Uma pistola 380, mesmo tipo de arma do crime, foi encontrada na casa dele. Promotor tem direito a julgamento pelo Tribunal de Justiça, a mais alta Corte estadual, escapando assim do Tribunal do Júri, um tribunal popular, formado por pessoas da sociedade, juízes de fato.
Isso não tinha acontecido antes no Tribunal paulista, um promotor ser julgado por assassinato. Reuniram-se os 25 desembargadores mais antigos, que formam o Órgão Especial, e condenaram Igor a 16 anos e 4 meses de prisão. Poderia ter sido bem mais. Por essas suavidades condescendentes do legislador, o réu por homicídio não precisa estar presente na sessão de julgamento. Graças a essa benevolência, Igor soube do resultado do julgamento condenatório e escafedeu-se. Não é necessário ser nenhum oráculo para fazer essa previsão. Demorou, mas no ano de 2006 ele foi exonerado do Ministério Público Estadual. E somente em 2009, foragido, foi preso. Não tinha mais como manter-se fugitivo.
Fora do processo, ficaram candentes lições. O criminoso sempre imagina que não será descoberto e quando gravita em torno da área do Direito acha-se em condições de burlar a tudo e a todos. Um crime como o de Igor não acontece de repente: é pensado, repensado, planejado, premeditado. O imprevisível nunca é levado em consideração, como o identificador farol da moto do vigilante, ou a familiarmente constrangedora exumação que revelaria o que se pensava encobrir. Nem a súbita inversão de papéis: o promotor, como Igor, acostumado a acusar, implacavelmente, convencendo os jurados a condenar assassinos, como ele, agora no banco dos réus. Somente poderia ser prevista a brandura com que foi tratado: pequena parte da pena cumprida na Penitenciária de Tremembé, no Vale do Paraíba, e rapidamente concedida prisão em regime aberto. Quer dizer: domiciliar, em casa.
Você poderia perguntar: ué, mas homicídio qualificado não é considerado crime hediondo, isto é, execrável, repugnante?
Sim, respondo, mas com nova pergunta: você ainda não aprendeu que alguns são bem mais iguais do que os outros? Repugnante, sim, graças as milhões de assinaturas que Glória Perez coletou após o assassinato da filha Daniela, conseguindo mudar a lei no Congresso. Mas desiguais levam vantagens no convívio social, como na Revolução dos Bichos, de George Orwell. Lamento, mas é assim que funciona. Ou não funciona.
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