O Rei da Fronteira perdeu o trono
O poder impressionante de Fahd Jamil, chefão do crime na fronteira entre Brasil e Paraguai
Arquivo Vivo|Percival de Souza, da Record TV
O império durou mais de meio século. O chefão poderoso era a referência de lei e ordem na fronteira de Ponta Porã, cidade a 323 quilômetros de Campo Grande, com a paraguaia Pedro Juan Caballero.
Fahd Jamil Georges, ou “Fuad”, como era mais conhecido, morava nua mansão, réplica da que Elvis Presley possuía nos Estados Unidos, e usava um Cadillac Lincoln, com pneus especiais, capazes de rodar pelo menos dois quilômetros depois de ter sido alvejado por tiros. Poderoso, no caso de Fuad, não era apenas uma força de expressão.
Conheci-o durante uma longa operação policial, comandada por agentes de São Paulo, na caçada ao assassino de Levy Campanhã, chefe da Casa Civil de Mato Grosso (à época não havia sido feito a separação de dois Estados, um deles hoje é o Mato Grosso do Sul). O governo mato-grossense pediu ajuda à Polícia de São Paulo, que designou o delegado Sérgio Paranhos Fleury, para desvendar o caso.
Acompanhei essa investigação durante quase um mês, quando se chegou ao autor do crime, praticado sob comando de Aramis, um tenente da Polícia Militar. Nessa ocasião, conheci os poderes ilimitados de Fuad Jamil: Fleury tinha um suspeito, que estaria escondido na fronteira, e o delegado paulista não hesitou em procurar Fuad Jamil e não qualquer autoridade estadual ou paraguaia para ajudá-lo. Achei estranho, porque já era grande a fama de Fuad como homem ligado ao contrabando e tráfico. Recebido durante um jantar, numa sala reservada do cassino propriedade de Jamil, pude perceber a movimentação de canos de metralhadora entre cortinas. Jamil estava tranquilo. Fleury não se perturbou e disse a Jamil que precisava ter o suspeito em mãos. Jamil, sem demonstrar nenhuma emoção, fez uma pergunta: “o senhor quer ele de pé o deitado?”. Traduzindo: o senhor o quer vivo ou morto?
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“Vivo”, respondeu o delegado. Jamil disse então: “se ele estiver em qualquer ponto do Paraguai, eu o entrego para o senhor, amanhã ao meio dia, amarrado, aqui na fronteira. No outro dia, no horário combinado, lá estava Fleury. Jamil foi direto: “não está por aqui”, garantiu. Fleury não fez nenhum comentário e retirou-se absolutamente convicto diante da informação.
Fiquei impressionado com tudo isso. O caso seria esclarecido, com grande repercussão local. Mais tarde, eu teria motivos para ficar ainda mais impressionado: durante a posse de um presidente da República, um avião oficial voou até a fronteira para ser abastecido de todas as bebidas necessárias (vinhos, uísque, licores e champanha, para a festiva posse. Algum tempo depois, Fuad foi preso espalhafatosamente dentro de um clube da alta sociedade em Campo Grande, por força de um mandado expedido em Curitiba (PR). Foi solto por força de um habeas-corpus concedido, em tempo recorde, pelo Supremo Tribunal Federal. A seguir, foi recebido pelo então diretor-geral da Polícia Federal. Fuad chegou ao prédio num carro do Senado da República, pertencente a um político que devia muitos favores a Jamil. O diretor da PF, a saída, acompanhou Jamil até o elevador e lhe pediu “desculpas por alguma coisa”. O delegado que prendera Jamil foi transferido imediatamente para um lugar distante.
Os tempos passaram e Fuad Jamil consolidou os alicerces de uma força inexpugnável na fronteira. Mas, aos poucos, o poder foi escapando de suas mãos. Primeiro, o contrabando de café, que o Paraguai não cultivava, mas era um dos maiores exportadores. Segundo, a então óbvia troca de carros roubados e trocados por drogas, deixou de ser uma constante. Terceiro, o plantio acentuado de maconha em Capitán Bado, cidade próxima a Coronel Sapucaia, temível lugar onde vi, dentro do Fórum, juiz e promotor com pistolas semiautomáticas na cintura durante as audiências. Quarto, o amplo poder sendo substituído, gradativamente, por cartéis no lugar de comandos individuais. Fuad Jamil tentou fazer um sucessor. Não conseguiu: parentes próximos, filho inclusive, foram retirados de cena e um primo executado. Para o bote final, a Polícia fomentou a operação omertà, o nome para o silêncio mafioso, até culminar com a operação Armagedon, o fim do fim. Uma última tentativa foi feita com a promoção de Jorge Rafaat, em desafio aos cartéis, inclusive a facção criminosa que possui domínio no Brasil. Rafaat passou a andar num carro com blindagem para resistir a disparos com armas até calibre ponto trinta. Virou uma peneira humana, metralhado com tiros ponto cinquenta. Fuad Jamil compreendeu: aos 80 anos de idade, seu ciclo de poder terminara. Idoso e com problemas de saúde, queixando-se de ser “perseguido por criminosos”, tinha – por uma questão de sobrevivência - que passar o cetro real, monárquico poder agora não mais individualizado. E mais: no seu caminho, surgiu o implacável juiz federal Odilon de Oliveira, que além de decretar a sua prisão, indiciou-o em muitos inquéritos e determinou a apreensão e confisco de bens. Humilhação final: cartazes distribuídos pela fronteira, com grande foto de Fuad e uma legenda: “se busca”. Procura-se.
Fuad preferiu entregar os pontos. Mas antes, o ódio contra o juiz levou a um plano sinistro a ser engendrado: Odilon seria capturado, colocado num chiqueiro de porcos, seria contaminado por uma sarne e somente receberia comida podre como alimento. Ficou em risco, logo ele que era considerado um risco para qualquer um. Um delegado federal, ao assumir a chefia da delegacia em Ponta Porã, foi homenageado com um churrasco. De repente, apareceu Fuad na churrascaria. Citou nominalmente todos os policiais presentes e, como um Don Corleone, dirigiu-se ao recém-chegado, chamando-o pelo nome, e lhe disse: “quem manda aqui sou eu”. Um policial aproveitou o momento para interceder por um amigo que tivera o carro roubado. O veículo foi devolvido no dia seguinte, na fronteira, lavado e com o tanque abastecido.
Os tempos mudaram. Ele, que amedrontava, foi tomado pelo medo. Entregou-se à Polícia, em Campo Grande, e agora pretende no máximo obter direito a prisão domiciliar, mesmo que tenha de pagar uma fortuna como fiança. O juiz Odilon registrou em cartesiana decisão judicial a situação que se vive na fronteira: “É utopia pretender que a repressão tenha a mesma eficiência da megatraficância e da lavagem de dinheiro”. O juiz escreveu, está num dos processos: “se o tráfico de drogas continuar sendo tratado com pajelança e a lavagem rastreada com tanta burocracia, este País, com certeza, irá se transformar num narcoBrasil e o mundo, num narcomundo”. O juiz diagnostica com voz profética: “Hipocrisia e ingenuidade são um bálsamo para a megatraficância”.
O juiz viveu com escolta pessoal, feita pela Polícia Federal. Passei um final de semana com ele vi com ele e o vi sem direito a privacidade alguma, sempre escoltado e temeroso de ser atacado. Aposentou-se e perdeu o direito a escolta. O Estado, mais freio dos monstros frios, segundo Nietzsche, à própria sorte. ” Tenho medo”, confessou-me, como um Quixote togado, coberto de razões e abandonado por quem sabe muito bem dos riscos permanentes que ele corre. Adquire cada vez mais força no Paraguai um certo Primer Comando de la Capital, audacioso simulacro do PCC que domina o crime organizado no Brasil, muito mais do que se pensa.
Preparemo-nos para o futuro, com bandidos em busca da glória, sempre feita de sangue, e os tentáculos de um polvo gigantesco que prolifera como uma hidra cheia de cabeças. As palavras-desabafo do juiz Odilon de Oliveira, consignadas em processo formal (quem leu?!), embute uma série de verdades, entre elas a de que a maior parte de uma grande carga de drogas remetidas chega a seu destino, é vendida e consumida. Tráfico e consumo se retroalimentam, um não vive sem o outro, embora idiotas úteis insistam em defender o indefensável. Começou uma nova fase, com Fuad fora do palco. Mas existem novos Fuads em gestação. Quem será o novo rei?
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