O último segredo do caso Nardoni
Arquivo Vivo|PERCIVAL DE SOUZA
Um corpo espancado: a menininha de cinco anos é violentamente agredida, a caminho para o edifício London, dentro do carro do pai, e também no acesso ao sexto andar, passando pela garagem, elevador e dentro do apartamento. Sangrava muito. Não resistiu.
Um corpo suspenso: o pai segura a menina pelos braços, no alto do prédio, depois de cortar com uma faca de cozinha a tela de proteção na janela. Não titubeou pelo que iria executar tendo em mente, mesmo Isabella Nardoni sendo sangue do seu sangue.
Um corpo que cai: depois de alguns instantes segurando a menina pelos pulsos, Alexandre Nardoni soltou-a. A menina despencou. O corpo caiu sobre um pequeno gramado, rente à fachada do prédio. Na queda, provocou um barulho seco, perceptível para o porteiro, que vai verificar o que era. Isabela está inerte. Caia uma chuva fina naquele momento, encharcando o corpinho da menina. Isabela estava morta.
Lá em cima, dentro do apartamento da morte, pai e madrasta conjecturaram. Por tudo que se sabe – investigações e perícias – Isabella perdeu a vida ainda dentro do apartamento, espancada pela mulher, que via nela um empecilho, uma ameaça de potencial reconciliação de Alexandre com a ex-mulher, a mãe de Isabella.
Se fosse acidente, a reação normal de qualquer pessoa seria telefonar para a Polícia, para os bombeiros, para o Samu. No caso de Isabella, não foi assim: Alexandre preferiu telefonar para o pai, e ambos tiveram uma longa conversa, vinte minutos, conforme seria apurado. O que exatamente aconteceu no apartamento somente pai e madrasta poderiam informar. Mas os dois, em pacto macabro, preferiram silenciar sobre os detalhes, que seriam provados sem que se soubesse das circunstâncias preliminares. Segredo partilhado. Só eles sabem. A Polícia iria descobrir o que eles não quiseram contar.
Depois de quase meia hora, Alexandre saiu do apartamento. Parecia ter ensaiado um script assassino. Berrava que um ladrão havia entrado no apartamento e arremessado a menina pela janela.
Ladrão, não foi - Verossímil, a princípio. Chamou-se a Polícia. O prédio, evacuado, foi vasculhado de alto a baixo, vistoria em todos os apartamentos, sem exceção. O tenente Fernando Neves, comandante da Força Tática da Polícia Militar na região, interditou todo o quarteirão do London, na rua Santa Leocádia, Vila Guilherme, e vistoriou apartamento por apartamento, em busca do ladrão. Todos, no edifício, estavam consternados. Houve uma verdadeira caça ao ladrão. Depois de um longo tempo, constatou-se: não existia ladrão algum. A porta de entrada não havia sido arrombada. E que ladrão seria este, que entra de maneira enigmática num apartamento, nada rouba e mata uma menina? Mas como, se Isabella chegou junto com o pai e da madrasta, e não antes? Peixe morre pela boca. Pai e nova companheira não resistiram aos anzóis investigatórios. Não confessaram, mas isso não teve a menor relevância: na Justiça, é ponto pacífico: confissão isolada é considerada a prostituta das provas. Aliás, nenhum assassino gosta de confessar – o que é processualmente inútil. A prova é, a rigor, a grande testemunha. Basta por si própria.
(Quando o Instituto de Criminalística terminou o seu trabalho, vi as fotos da menina, tiradas pelos peritos no local do crime, em março de 2008. Chocantes. Segurei-as nas mãos e chorei. Os delegados do caso – Calixto Calil e Renata Pontes – também choraram. Para mim, era impossível não associar o que estava vendo com a minha neta querida, à época com a mesma idade de Isabella. Durante muitos dias, a imagem das duas não saia da minha mente. Meditava: até onde o ser humano é capaz de chegar!)
Os delegados do caso, ambos do 9º Distrito Policial, na rua dos Camarés, foram impecáveis na investigação. A delegacia tem uma bela escultura de dom Quixote, de Cervantes, à sua entrada. Calixto e Renata saíram galopando atrás dos moinhos de vento. Nada imaginário. É difícil controlar as emoções – primeiro, pensando na dor do pai; depois, a angústia de ir descobrindo aos poucos o que realmente havia acontecido. Primeiro, a solidariedade. Depois, a raiva. Nardoni e Ana Carolina foram sendo acuados, pressionados, sem condições de negar, embora tentassem. A Polícia requisitou uma segunda perícia no apartamento. O ambiente do crime havia sido lavado após o crime, para destruir qualquer prova. Um boneco de pano foi levado para simular o corpo de Isabella.
As provas robustas foram crescendo: na cozinha, estava a faca usada para cortar a rede (nylon) de proteção. Num móvel, a marca dos pés de Alexandre, que nele se apoiou para segurar a filha e depois soltá-la no espaço. No apartamento, foi decisivo o uso do luminol, reagente químico que detecta manchas de sangue, mesmo que não sejam visíveis a olho nu.
Tudo provado, incontroverso, insofismável. Caso encerrado, delegados e peritos do Instituo Médico Legal e do Instituto de Criminalística, órgão da Polícia Científica, jantaram juntos no Terraço Itália, ao final das investigações. Fui convidado para estar com eles e partilhar dos bastidores do assassinato horrendo.
Mea culpa - O tempo passou e a verdade não fugiu. Foi marcado o dia do julgamento, no Tribunal do Júri da capital. Antes, porém, um fato surpreendente e trágico aconteceu. O tenente que isolou o prédio onde estava Isabela matou-se. Foi um choque. Porquê o suicídio?
Será que... perguntas e mais perguntas. Haveria co-relação? Mas nada tinha a ver com Isabela. Suicídio é uma palavra que vem do latim – sui, a si mesmo, e caedere, matar. Confúcio pregava que a vida pode ser desprezada, o rei Saul se matou como registram as narrativas bíblicas. Na Roma antiga, os que se esgotavam nos prazeres viam na própria morte uma saída ante o vácuo de significados. Os espartanos o consideravam como algo que se poderia admitir. O cristianismo, com o decálogo mosaico contendo o “não matarás”, aboliu esses conceitos. Na Idade Média, decidiu-se que suicida não tinha direito à sepultura cristã. Joaquim Nabuco dizia que existem mais casos de suicídio do que se possa imaginar. O assunto ainda é tabu. No Instituto Médico Legal de São Paulo, foi feito um estudo sobre suicídio. Descobriu-se que são empregadas as mais variadas formas, mas que no caso da mulher existe uma característica marcante: o rosto é preservado. Os homens, ao contrário, preferem disparar projéteis na boca, no ouvido, na cabeça.
A causa mortis é descrita de maneira técnica, insuficiente para apontar razões. Entre elas, o desistir da vida por parte de adolescentes, inclusive em condomínios de luxo e escolas particulares de alto padrão. Seria uma maneira de reagir ao fracasso, uma desilusão, uma agonia, uma decepção? É muito difícil prevenir na introspecção do ato covarde que exige a maior coragem para afrontar o respeito à vida.
Mas o tenente suicida não percorreu nenhum desses caminhos da sombra da morte. Trazia dentro de si um grande segredo: ser adepto da pedofilia. Numa investigação em curso, a Polícia chegou até ele. Os homens de boinas azuis da Corregedoria da Polícia Militar foram ao seu apartamento. Com mandado de busca e apreensão nas mãos, vasculharam tudo. No aposento onde ficava seu computador, retiraram os fios para levá-lo.
Foi nesse exato momento que ele, em segundos, tomou a decisão. Sabia que dentro daquele computador estavam armazenadas muitas fotos, provas suficientes para comprovar a sua relação com crianças. Fora os bonecos de pelúcia encontrados. O cenário apontava de modo indiscutível a sua atração sexual por crianças.
O tenente, que iria sair dali preso, já escoltado por policiais militares da Corregedoria, pediu para ir ao banheiro. Dentro do apartamento, esposa e filhos do tenente assistiam a tudo, perplexos. De repente, ouviu-se o barulho de um tiro. Os policiais imediatamente derrubaram a porta. Lá dentro, estirado no chão, o tenente já estava morto. Levou para a sepultura os seus segredos pedófilos. Sobre Isabella Nardoni, nada teria a acrescentar.
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