Percival de Souza: Os segredos da matança no PCC
Não há coincidência: todas as mortes recentes dos líderes da facção estão ligadas; Há uma grande disputa pelo poder
Arquivo Vivo|Percival de Souza
Disque D para matar.
Esse é o código, a norma, para mandar executar quem viola as regras da constituição criminosa — sim, o PCC possui uma lei maior, magna, acima de todas, repleta de cláusulas pétreas, obrigatoriamente implacáveis e rigorosamente determinantes.
O “D” é de disciplina, equivalente aos parágrafos da lei acima de todas. Um estatuto. A sigla PCC corresponde a décima quinta letra do alfabeto, P, e as três primeiras, C. Seu alcance não tem limites, com ousadia, atrevimento, arrogância e demonstração de força. Funciona implacavelmente: há um juiz nos presídios de segurança máxima Antônio Machado Dias, na região de Presidente Prudente, que é extremamente rigoroso nas etapas de cumprimento da pena? Mata.
Após 70 tiros de fuzil, homem é executado na zona leste de SP
Há um ex-diretor da Casa de Custódia em Taubaté (Ismael Pedrosa), desrespeitoso no trato com os “irmãos” do crime? Mata. Há uma psicóloga na segurança máxima de Catanduvas (PR), que não elabora laudos favoráveis aos irmãozinhos? Mata. Existem agentes penitenciários que não respeitam os que consideram “donos” da cadeia, passando na frente deles sem pedir licença? Mata. Há um juiz que é casado com uma das advogadas da facção, cadastrada para ir ao presídio como “visita íntima” e fica grávida do “cliente”? Compra. O magistrado fica quieto porque entra na folha de pagamento mensal da organização, conforme apurado e documentado pela Corregedoria Geral da Justiça? Há uma rede de advogados que não advogam, rábulas e bacharéis que são apenas empregados, doutores do crime, e cumprem ordens? Há. Entres eles, encontram-se alguns que vestem capa de defensores de direitos desumanos e prometem o que não podem prometer, mas recebendo bom dinheiro antes? Mata.
É assim que o PCC cresce, amplia poderes e adquire o status presente, que é o monopólio do tráfico de drogas e contrabando de armas. Seu segredo é uma organização que somente se torna possível com a participação de agentes do Estado, condição sine qua non para a existência do crime organizado. Cumplicidade mesmo, embora idiotas ideológicos vejam nos membros da organização românticos Robins Hoods.
Homem é executado a tiros na porta de hotel na zona leste de SP
É nesse cenário que “Galo Cego” foi sumariamente executado com muitos tiros de fuzil, dentro e um Audi blindado, na zona leste da São Paulo. A radiografia da cena é criminal: “Galo Cego” atraiu para um encontro com a morte, tempos atrás, na mesma zona leste, o PCC “Cabelo Duro”, também executado a tiros de fuzil à porta de um hotel. “Cabelo Duro”, por sua vez, tinha tudo a ver com as mortes de “Gegê do Mangue” e “Paca”, dois PCC da cúpula, metralhados ao descer de helicóptero numa aldeia indígena do Ceará. Os dois tiveram os olhos vazados. Um recado.
O que está acontecendo é uma feroz disputa pela hegemonia do poder, sem concessão de espécie alguma para concorrentes e adversários. Mate-se. Antes de "Galo Cego", outro desafeto foi metralhado, dirigindo uma Mercedes Benz, na mesma zona leste. Todas as mortes estão entrelaçadas. Nada é de graça ou por acaso. Não existem coincidências. “Gegê do Mangue” foi misericordiosamente libertado por um “homem da capa preta” de Presidente Wenceslau, como a bandidagem se refere aos juízes, presídio onde o chefão Marcola está recolhido. Esse inacreditavelmente à véspera de um julgamento por assassinato, na Capital. Juridicamente inexplicável, tanto que um cândido oficial de justiça foi intimá-lo, na Vila Madalena, onde ela dizia residir e a Justiça fez de conta que acreditou. Em São Paulo, foi decretada novamente a prisão de Gegê. Tarde demais. Claro que “Gegê do Mangue” não estava lá. Tinha coisas mais importantes para fazer pelo PCC: assumir o lugar de Jorge Rafaat, metralhado com tiros de armas ponto 50 dentro de sua caminhoneta, blindada para suportar tiros até ponto 30, em Pedro Juan Cabalero, fronteira com Ponta Porã (MS).
“Galo Cego”, assaltante de bancos (num deles, em Guarulhos, três pessoas foram mortas), estava condenado, mas tranquilo na rua, graças a um bondoso e esquisito habeas-corpus concedido a ele pelo Supremo Tribunal Federal. Aliás, bater às portas do Supremo custa muito dinheiro, produz fortunas e floresce milionários. Mas Galo, que nada tinha de cego, tinha dinheiro mais do que suficiente para bancar.
Quem quiser chegar ao epicentro da matança patrocinada pelo PCC precisa saber investigar. Passivamente se assiste à implantação dos escritórios do crime dentro de presídios. É uma aberração tolerada. Inclui bandidos fazendo vídeo conferências via celular, gravações detalhadas das matanças com distribuição pela rede PCC. “Inteligência” e seus serviços são aqui uma palavra abstrata. Na Polícia Militar, há um curso especial para isso e os oficiais que se especializam na área têm no uniforme o pequeno símbolo uma chave. Quer dizer: inteligência é a chave que abre portas para a descoberta de fatos, do mesmo modo como a prova quer dizer nascimento da verdade. A chave que desvenda mistérios possui segredos, é preciso saber fazê-la girar na fechadura para obter informações. Exemplo: o grande furto aos cofres de aluguel do Banco Itaú, na avenida Paulista, em 2011, foi engendrado pelo PCC dentro do presídio de Mirandópolis. Nesse tipo de cofre, não se obriga o cliente a dizer o que ali está guardado: euros, dólares, joias, escrituras, documentos... O que foi levado pelos ladrões que ficaram no banco durante a noite inteira? Não se sabe, mas a inteligência sabe, por exemplo, que um dos cofres estava alugado para guardar joias de Hebe Camargo. Uma fortuna. A origem desse furto é impressionante. A inteligência já sabe: para descobrir muita coisa que acontece aqui fora, é preciso investigar os planejamentos que são feitos lá dentro. Dos presídios.
Inteligência: como um preso do PCC conseguia receber mensagens da organização se a vigilância era severa, inclusive com câmeras no para fiscalizar tudo e todos? Porque era visitada por uma advogada, que de costas para a câmera, abria a blusa e exibia os seios, onde mensagens estava escritas a tinta. Advogada...
Inteligência: outra advogada, que defende um chefão do PCC, conseguia falar diretamente com a autoridade máxima dos presídios. Quando essa autoridade foi substituída no cargo mandou a secretária (que era sua parente) apagar os registros de dia, horário e tempo de duração das longas conversas. O sucessor mandou o livro com os registros para o Instituto de Criminalística, que recuperou as informações. Fez um longo e minucioso relatório e mandou para a Procuradoria Geral de Justiça.
Inteligência: ter belas fontes, cultivar os relacionamentos, não se precipitar diante das primeiras descobertas, saber seguir o fio de Ariadne para chegar com êxito ao Minotauro. Como na mitologia grega, o monstro está escondido na caverna cheia de labirintos. Teseu, o herói, segue as dicas de Ariadne, caminhando e estendendo um fio para não se perder e localiza o monstro. Mata-o como ele gostava de matar.
Quando o juiz Machado Dias, o Machadinho, foi fuzilado à saída do Fórum, em Prudente, o então diretor do Deic, Godofredo Bitencourt, foi ao Tribunal de Justiça, onde o corpo do magistrado foi velado, e disse aos desembargadores: “Até aqui, as vítimas eram somente nós, policiais. Agora o PCC chegou aos senhores. Ou nos unimos ou estamos perdidos”. A soltura de “Gegê do Mangue” e “Galo Cego” são detalhes sobre como eventuais filigranas jurídicas são instrumentalizadas pelo crime organizado.
O PCC está ajustando suas contas: o que faz à luz do dia ou na escuridão da noite é um deboche acintoso. Para ele, não existe cartório de protesto e muito menos qualquer tipo de inadimplência. A prioridade atual da organização, poder de fato e não paralelo, é formar um cartel tão poderoso como o colombiano. Cocaína-exportação, para Estados Unidos e Europa. Barcos, iates, contêineres. Planejamento logístico. Muito dinheiro em jogo. Ou nos juntamos ou perecemos.
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