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Por dentro da máfia italiana, na terra do juiz Giovanni Falcone

Arquivo Vivo|Percival de Souza

Giovanni Falcone e Paolo Borsellino juntos em pintura num prédio de Palermo
Giovanni Falcone e Paolo Borsellino juntos em pintura num prédio de Palermo

PALERMO, Sicília — Os sinos dobram esta semana aqui, na Itália. Um repicar lento, pausado e triste, sons que parecem transmitir dor, indignação e saudade. Por quem eles dobram? Dobram in memoriam por Giovanni Falcone, assassinado há exatos 26 anos, pelas forças poderosas da Máfia.

Naquele 23 de maio de 1992, o juiz Falcone, magistrado que enfrentou corajosamente a Máfia, desceu no aeroporto internacional da região e seguiu ele mesmo, querendo dirigir um pouco, ao volante de um Fiat blindado, com destino à sua cidade natal, em companhia da esposa, a também juíza Francesca Morvillo. Num trecho da estrada, estavam ocultos 400 quilos de dinamite dentro de um duto para escoamento de águas. No exato momento em que o Fiat passou, um mafioso escondido numa pequena colina, acionou o detonador. O carro de Falcone foi para os ares. Centenas de metros de asfalto foram arrancados. Outro carro, onde estavam três seguranças, também foi despedaçado.

Passo por esse lugar sinistro. O aeroporto agora se chama Giovanni Falcone - Paolo Borsellino, outro juiz morto pela Máfia em atentado apenas dois meses depois. No lugar da explosão, foi erguido um pequeno monumento. Em frente ao prédio onde ele morava, floresce uma figueira, ficus magnólia, como símbolo de árvore da vida, a dizer que Falcone foi morto, mas seus ideais permanecem. O tronco da árvore fica repleto de mensagens enternecedoras de esperança. As sacadas da cidade, repletas de cartazes: “não o mataram, suas ideias caminham sob nossas pernas”; “e agora matem todos nós”.

Emoção pura caminhar por Palermo. Num ponto da cidade, vejo um enorme painel, com desenho dos rostos de Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, seu fiel escudeiro jurídico e parceiro de luta. Numa rua estreita, há um prédio pequeno, com farmácia no térreo e residência na parte de cima. Uma placa na parede: “aqui nasceu Borsellino”. Os pais dele eram farmacêuticos. Ele mesmo queria ser remédio para a cura de uma doença, a Cosa Nostra, que na Itália adota o símbolo de um polvo. Tentáculos se infiltram por toda parte.


Placa mostra onde Borsellino nasceu
Placa mostra onde Borsellino nasceu

Quem foi Falcone?

Falcone durante entrevista na TV italiana
Falcone durante entrevista na TV italiana

A região da Sicília, banhada pelo Mediterrâneo, possui uma longa história de treze séculos de invasões e dominações, entre elas de gregos, romanos, árabes, bizantinos e normandos. O brasão da Sicília é uma mulher com três pernas. Símbolo de poder, energia e movimento progressivo. Fala-se um dialeto próprio por aqui. Hoje, invasão e domínio são de outro tipo, criminoso, que para ser enfrentado exige obstinação, coragem, renúncias e sacrifícios. Quem foi Falcone? Que homem foi este?


Foi um homem que aprendeu e ensinou que se a força sem o Direito é prática estúpida, ao mesmo tempo o Direito sem a força é uma palavra inútil. Encontro num hotel em Palermo um pequeno e precioso tesouro. Um livro de 171 páginas, escrito por ele, Cose di Cosa Nostra, com a colaboração da jornalista Marcelle Padovani. Quem foi ele? Falcone responde, na primeira pessoa do singular, um “pronomezinho irritante”, segundo o escritor Graciliano Ramos, mas aqui absolutamente necessário: “Não sou Robin Hood. Nem um kamizaze e muito menos um trapista” (ordem monástica).

Quem foi, então? “Sou simplesmente um servidor do Estado, em terra infiel”. Com esse pronome na cabeça, sigo a minha peregrinação por Palermo. Para entender o que Falcone quis dizer. E aprendo, dolorosamente: na linda catedral da cidade, existe um túmulo de mármore que destaca o sepultamento do padre Giuseppe “Pino” Puglisi. Assassinado pela Máfia. Ousava, em suas homilias, criticar os capos mafiosos e sua influência maléfica sobre a juventude, tráfico de drogas e outros crimes. A Máfia passou a considerá-lo um “cadáver excelente”, macabra definição para distinguir suas vítimas preferenciais.


Um pouco mais de um ano após o assassinato do juiz Falcone, escolheram exatamente o dia do aniversário do padre para matá-lo. Ele fazia 56 anos, no dia 15 de setembro de 1993. Voltava para casa. “Estava esperado por você”, disse o assassino, à porta, antes de disparar. Giuseppe morreu com um sorriso de missão cumprida. Foi beatificado. No túmulo dentro da Catedral, está escrito: “assassinado por ódio à fé”. Que ódio é este? Ódio à sua pregação da Palavra de Deus.

No ano seguinte, foi a vez do padre Giuseppe Diana, que nos seus sermões colocava a facção Camorra em seu devido lugar. O padre estava na sacristia, preparando-se para celebrar a missa, na igreja em Caserta, região de Nápoles, quando levou dois tiros na cabeça, tingindo de vermelho com seu sangue o altar.

Entendo melhor Falcone, agora. Ele se definia como servidor do Estado. A terra infiel abriga a Máfia-Estado, não um poder paralelo, mas um Estado em si. Continuei minha peregrinação por Palermo. Vou conhecer o majestoso teatro Massino. Foi aqui que o diretor Francis Coppola gravou a última cena da trilogia O Poderoso Chefão, com Al Pacino interpretando o sucessor de Marlon Brando. Fico em dúvida: o filme tem mais cenas de violência do que a Máfia na vida real ou a Máfia suplanta o filme? Porque Falcone escreveu: “a Cosa Nostra tem à sua disposição um arsenal completo de instrumentos da morte”. Armas de cano longo, bazucas, fuzis lançadores de granadas, estoques de explosivos.

Falcone foi um juiz sábio e criativo, processual e psicologicamente. Com o capo Tommaso Buscetta nas mãos, preso no Brasil, usou com maestria freudiana o código de honra mafioso para convencê-lo habilmente a falar. Sim, bandido diz que tem honra e, segundo ela, a família é considerada intocável. A Máfia rompeu esse código e todos os seus elos, matando dois de seus filhos e vinte parentes até terceiro grau.

O rastro de sangue era a hora: Falcone argumentou que todos os vínculos mafiosos estavam rompidos. O resultado, devastador para a Máfia, foram 329 páginas repletas de detalhadas confissões. Praticamente o fim de Cosa Nostra em Palermo. Tornaram-se mais fortes a Camorra e, principalmente, a ‘Ndrangheta, a mais perigosa hoje, segundo a Promotoria Nacional Antimafia, de Roma: “administra centenas de milhares de milhões de euros, que governa todo tipo de dinâmicas econômicas, lícitas e ilícitas, na Itália”. O nome da organização vem do grego “andrangathia”, que paradoxalmente representa heroísmo e virtude, ou seja, seus integrantes seriam homens bons, formando uma onorata società. Só eles mesmos para acreditar nesse fictício poço de virtudes reservado a honrados mafiosos.

Falcone previu, diante das matanças em série, que poderia ser a próxima vítima. Mas não hesitou em trabalhar com afinco e rigor. É o pai jurídico do maxiprocessso, comandando uma equipe que sabia tudo sobre todos os envolvidos e implicados em processos distintos, fazendo diligências in loco: em vez de ficar esperando, estático, até ser provocado, como fazem seus colegas brasileiros. Saía atrás das informações e provas, indo inclusive ao Brasil, com uma equipe de treze peritos, quando Tommaso Buscetta foi preso. Um processo se interliga a outro. Maxi sinergia.

E agora? Depois de 3.600 condenações e mais 2.200 anos de prisão, alguns começam a ser soltos 26 anos depois do início dos processos. A bordo de um BMW da Polícia, o carabinieri elegantemente fardado diz: agora é que vamos começar a ver como ficam as coisas. Não senti otimismo nas palavras do garboso policial.

Lembro-me de Falcone, conheci-o pessoalmente no Brasil. Cabelo repartido ao meio, bigode, óculos inclinados sobre o nariz para ler. Tive um sonho: escrever um livro sobre Buscetta, ele mesmo contando tudo. Já pensou? Quem sabe eu pudesse ser um segundo Mario Puzzo, o autor do best-seller The Godfather? O momento era oportuno: ele fizera incríveis revelações sobre a Cosa Nostra nos Estados Unidos. Ganhou rosto novo com uma cirurgia plástica e uma nova identidade, graças a um acordo com a DEA, Drug Enforcement Administraton, a poderosa agência anti-drogas norte-americana.

Um dos juízes que trabalhava com Falcone e era uma espécie de confessor, levou-lhe a proposta. Ele concordou! Fiquei eufórico. O sonho literário da minha vida se transformaria, porém, numa grande frustração: Buscetta morreria de câncer, em Nova York. Adeus livro que nem começou. Solitário em Palermo, faço reminiscências íntimas e silenciosamente, na Catedral, ergo meu respeitoso tributo a Giovanni Falcone.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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