Réquiem para Leandro, o soldado assassinado
De origem humilde, natural do Rio de Janeiro, prestou concurso às escondidas na Polícia Militar diante dos temores da família
Arquivo Vivo|Percival de Souza, Do R7
Causou-me estupefação a indiferença, quase absoluta, diante do desaparecimento que, uma semana depois, seria descoberto como assassinato, do jovem policial-militar Leandro Martins Patrocínio, trinta anos de idade, integrante do CPRv – Comando de Policiamento Rodoviário.
Origem humilde, natural do Rio de Janeiro, prestou concurso às escondidas na Polícia Militar. Ele queria fazer isso no Rio, mas a família colocou obstáculos, por considerar, como realmente é, o lugar perigoso para quem precisa andar fardado. Casado, pai de uma menina de um ano e dez meses, passava a semana em São Paulo e voltava ao Rio, quando estava de folga, para ver a família. Sem recursos, dormia no alojamento do próprio quartel da corporação, até sumir num sábado, 29 de maio, antes de apresentar-se para mais um turno de serviço, às cinco da manhã seguinte.
O sumiço misterioso mobilizou o que a Polícia Militar tem de melhor nas buscas: grupos especializados em várias áreas do Comando do de Policiamento de Choque, a cavalaria, os cães, os bombeiros, a Polícia Científica, os cadetes da Academia de Polícia Militar do Barro Branco, com a ajuda preciosa do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, a Guarda Civil Metropolitana. Todos juntos com um só objetivo: localizar Leandro, a princípio com a esperança de ainda estar vivo, e depois empenhados em achá-lo mesmo que o pior já pudesse ter acontecido. A isto se chama honra, dignidade, solidariedade, considerar aquilo que pudesse ter vitimado Leandro fosse um golpe criminosamente traiçoeiro que atingisse a toda a corporação.
Grave, muito grave, capturar um policial e conduzi-lo para a morte, lenta, precedida de torturas horripilantes, como evidenciaram as manchas de sangue no cativeiro onde ele foi enclausurado. Grave, muito grave, a omissão (consciente) daqueles que deveriam lutar pela preservação de direitos fundamentais de um ser humano. Direitos da espécie, todos nós, dignidade humanitária, nada de seletivo na utópica luta para defender o mais fraco contra o mais forte.
Quando a filósofa judia-alemã Hannah Arendt escreveu seu livro sobre o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann, cunhou uma expressão ajustável, entre tantas situações, à tragédia do soldado Leandro Patrocínio, na favela de Heliópolis. A expressão: “banalização do mal”.
O que vem a ser isto, um pouco fora dos jargões acadêmicos, insuficientes para retratar, como um ser humano espera, as facetas desumanas do cotidiano. Esse retrato, um DNA talvez, mostra – em recente linguagem do Direito – que existe uma teoria aplicável processualmente que se chama “domínio do fato”. Ela significa que você pode ter pleno conhecimento da existência de determinados fatos, e assim mesmo fazer de conta que tais fatos não existam. Nasce daí uma outra teoria: a da “cegueira deliberada”, aquela em que você prefere não querer ver.
Vamos tentar ver aquilo que tenta parecer estar encoberto, mas não está. Leandro Patrocínio sonhava em ser policial militar. Há gente que detesta a Polícia, mas tem muita gente que ama a Polícia. Em Heliópolis, moram muitas pessoas que não tem outro lugar para morar. Há, também, uma escória – não o lumpém, o proletariado sem condições econômicas e consciência de classe. A rigor, na “comunidade” - eufemismo semântico para “favela” – existe um poder extra, que não pode mais ser chamado de paralelo, mas sim de fato, transformando absurdamente em paralelo o poder de Estado. Por que? Domínio do fato, cegueira deliberada: ali, quem dá todas as ordens é o tráfico, a narcoditadura, e se você quiser saber de algo oculto e tiver canais de comunicação, precisa pedir uma espécie de audiência a um dos poderosos chefões - primeiro para transitar, segundo para chegar onde precisa e terceiro consumar com êxito a sua busca.
Assim aconteceu com Leandro Patrocínio: primeiro, foi levado para um cativeiro ao lado de uma casa noturna; lá dentro, foi torturado cruel e impiedosamente até a morte; terceiro, seu cadáver foi colocado dentro de uma caçamba e levado para um depósito de entulho.
Observe, então: para a Polícia, a informação sobre a caçamba foi fundamental, a ponto de as buscas concentrarem-se numa grande área de aterro, inicialmente vistoriada por uma pequena escavadeira do próprio Corpo de Bombeiros e, depois, por um maquinário maior, cedido pela Prefeitura. O informante da caçamba foi preciso e seguro. Terá direito a alguma benesse, no futuro, mas tudo isso extra-autos processuais ou de inquérito. É assim que funciona se você quiser descobrir algo. Se você seguir apernas regras convencionais, não descobrirá nada. Domine o fato.
Chegamos à indiferença que a tudo banaliza, segundo Arendt: assistindo ao julgamento de Eichmann, que para ser julgado em Nuremberg foi capturado pela inteligência israelense na Bolívia, a filósofa descobriu que os sanguinários carrascos nazistas cometiam as atrocidades às quais estavam habituados como se tudo aquilo não passasse de uma atividade meramente burocrática. É como se, por aqui, você quisesse descobrir quem matou Leandro Patrocínio apenas expedindo intimações para certos tipos de pessoas prestarem depoimento (troque-se, aqui, “burocráticos” por “cartorários”). É de se frisar que, ao mobilizar maciçamente seus melhores recursos, a Polícia Militar destacou tropas com especialidades diferentes, desde a busca em matas, cerco a fortalezas (bunkers) do crime e uma potente capacidade de fogo, como no momento que um bandido atirou contra a tropa, que se viu obrigada a revidar. Atira contra a Polícia não é coisa de “suspeito”, e sim de facínora, a menos que a Academia Brasileira de Letras mude o significado de certas palavras.
O que houve com Leandro? Algo evidentemente triste, chocante, tenebroso, inadmissível, intolerável, imperdoável. Olhe nos olhos da viúva. Eu olhei, em entrevista ao vivo no “Cidade Alerta”. Olhe nos olhos da irmã. Eu olhei. Foi insuportável. É a dor estampada nos olhos que não brilham mais, a dor de quem se dói do bem perdido, como escreveu António Vieira num dos seus sermões: “o bem mais perdido, e totalmente perdido, é aquele que perdido uma vez não pode recuperar-se”.
Não pode recuperar-se com nenhuma dor... por maior que seja, lancetando uma cicatriz eterna na alma...Conversar com policiais empenhados na busca nessa hora é humanamente indispensável. Porque eles estão ali, vasculhando por todos os cantos, sentindo que a vítima procurada poderia ser qualquer um deles. São homens e mulheres, mães e pais, que na mente projetam imagens dos filhos queridos, provocando uma vontade incontrolável de vê-los o mais rapidamente possível. Leandro era pai, uma menininha, no lar era o provedor... e agora?
Detalhe final: Leandro era negro. Pobre e negro, na favela poderia estar a sua única diversão. Morar no quartel era um atestado de pobreza. Nada há que se possa falar contra ele, referência do bem.
No DHPP, um dos algozes disse que sentia prazer em matar policiais. No bas-fonds, existe uma tatuagem que glamouriza esse tipo de matador: o desenho de um palhaço. Bandido que gosta de matar policial mata qualquer um. Não feche mais os olhos para casos de latrocínio, quando também já se muda o significado das palavras. Antes, era roubo seguido de morte. Agora, é morte seguida de roubo. Isso mesmo: matar primeiro, roubar depois. É o nosso cotidiano.
Portanto, chegou a hora de pensar profundamente: é óbvio que direitos humanos devem ser preservados. Leandro era um ser humano. Os direitos devem ser sempre protegidos contra quem os viola e afronta. Estes, devem ser punidos e não protegidos. Protegidos devem ser os que combatem os violadores de direitos humanos. Por que parece tão difícil compreender isso? Perdoe-nos, Leandro.
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