Réquiem para os mortos de Brumadinho
Tragédia é nosso retrato: a corrupção joga-nos na lama pois atinge níveis deploráveis. Vítimas, tentamos escapar e erguemos as mãos, sucumbimos
Arquivo Vivo|Percival de Souza
Milhões de metros cúbicos avançaram com fúria avassaladora. Pessoas, muitas, foram engolidas pela lama. Buscas incessantes, bombeiros afundando na pesada mistura com rejeitos de mineração, que destruíram corpos resgatados e insepultos. Serão ossos secos num vale gigante, como na visão do profeta Ezequiel, capítulo 37 do livro do Antigo Testamento.
Veja vídeo com o momento exato em que barragem se rompeu
Agora, cadáveres insepultos, destroçados, sem que muitas famílias possam realizar a dignidade da despedida humana.
Agora, temos cadáveres insepultos causadores das mortes que poderiam ser evitadas. Os responsáveis pela tragédia, esquivando-se mutuamente das responsabilidades. Jogam culpa uns nos outros. No ritual, ninguém teria culpa, embora todos sejam culpados — Executivo, Legislativo e Judiciário. Afundaram-se na lama, que alcançou até 15 metros de profundidade, arrastando consigo o silêncio coletivo dos inocentes. O mais terrível dos silêncios.
De Brumadinho, para o Brasil. De Minas Gerais, para outras situações de insegurança e medo, agressões múltiplas e impunidade sem fim. Como disse o escritor irlandês Oscar Wilde, “as pessoas esquecem o mais elevado dos deveres: aquele que se tem para consigo mesmo; suas próprias almas têm fome e frio”.
As pessoas se esqueceram mesmo. Não quiseram aprender com Mariana. Apostaram na reincidência específica, como se diz de forma bacharelesca, em Brumadinho. Outro escritor, Eça de Queirós, já havia observado, e faz tempo, que o Brasil tem muitos doutores e poucos brasileiros. Não se pode contestar.
Que fizeram os nossos doutores? Debruçaram-se nas leis, interpretando-as para o seu módulo de interesse: acusar os culpados, responsabilizando-os cível e criminalmente; defendendo a todo custo o Estado mantenedor da empresa responsável pela mineração; examinando essas próprias leis e critérios, explorando seus defeitos, pois há muito, reconhecidamente, de obsoleto; ignorando as cicatrizes nas almas dos familiares, marca que jamais se apaga e não consta de nenhum processo.
O que aconteceu em Brumadinho, repetindo Mariana em escala maior de tragédia humana, retrata o País em matéria de violações e agressões. É a ilustração ao vivo em um mapa de dimensões continentais.
O linguajar é chamado de “técnico”, justamente para deixar de fora os “leigos”. Eles sabem de tudo (é o que pensam), nós não sabemos de nada. Não entendem nada mesmo é da alma humana, que consideram uma abstração. São insensíveis como um bloco monolítico. Não sorriem diante de uma criança. Não choram à beira de uma sepultura.
O tecnicismo define as regras de controle como “protocolos” a serem seguidos. Não sabem que a sociologia define a ausência de regras e justamente das normas, a anomia, como definiu Durkheim, o pai dos sociólogos. “Protocolos” são regras no papel que não são obedecidas. Leis, decretos, fiscalização, controles, órgãos reguladores. São pedantemente ridículos, absolutamente inúteis. Brumadinho? “Todos os protocolos foram obedecidos”. Mariana? “Os processos estão em tramite”.
Mentira. As leis não funcionam, os ambientalistas sabem disso, e a política podre gravita em torno de tudo. Da bancada da bala chegamos à bancada da lama, que garante espaços políticos na Agência Nacional de Mineração. Um parágrafo assumiu o extremo poder gramatical ao ser chamado de “laudo”, assinado por engenheiros que atestaram a estabilidade da barragem de Brumadinho, invocando a Lei 12.234, de setembro de 2010, e “portaria vigentes” do antigo DNPM, hoje Agencia Nacional.
É verdade o que escreveram? Não. Eles receberam endosso? Sim, de um geólogo e dois gerentes da Companhia Vale do Rio Doce, responsáveis por licenciamento ambiental e administração da obra. Um refeitório que funcionava à beira de barragem demonstra como eles são “técnicos” e nós, “leigos”.
Há muito mais, porém. De acordo com os tais protocolos, sirenes de alarme deveriam tocar diante de um risco iminente. Na tragédia, as sirenes não tocaram, e quem almoçava no local foi surpreendido por estar, de repente, numa gaiola de lama, tentando escapar desesperadamente.
Brumadinho faz analogia de lama. Como na vida cotidiana, precisamos de barragens de contenção, que deveriam ser justamente os freios inibidores para práticas criminosas repulsivas, como assistimos por toda parte e de várias maneiras. As barragens são socialmente necessárias para tornar possível a convivência em sociedade, onde ninguém pode fazer o que bem entende. Onde estão essas barreiras? Em leis e decretos que não se coadunam com a realidade dos fatos. Quem denuncia isso? Os “leigos”. Os sábios preferem defender o status quo.
Quando a barragem ameaça estourar, é preciso que toquem os alarmes. Que façam muito barulho, para dar tempo às vítimas para fugir. O que acontece no dia-a-dia? Os alarmes tocam, as barragens explodem e as vítimas sucumbem. Assassinos matam, estupradores estupram, agressores espancam, bandidos explodem com dinamite, penitenciária é escritório do crime e assim por diante. É o nosso Brumadinho cotidiano.
Prisões rápidas em Brumadinho. É preciso dar uma resposta. Soou o alarme, mas já tem gente se mexendo para abafar o som. “Prisão não é remédio, mania de punição”. Quem diz isso é ortodoxo em interpretar lei a seu modo, mas não tem coragem de dizer isso para famílias à beira da cova. Clamor público? Isso é coisa de “leigo”, que deve ser condenado, a priori, a resignar-se e não se indignar. Contentem-se com tecnicismos estéreis.
Oportunistas de ocasião foram a Brumadinho. Nem os urubus sobrevoaram o lamaçal, mas lá estavam eles, abutres de duas pernas, evolução da espécie para a politicagem barata, menosprezando o estafante trabalho dos bombeiros, que para salvar tiveram que se arrastar sobre a lama.
Brumadinho é o nosso retrato. A corrupção joga-nos na lama, porque atinge níveis deploráveis. Somos vítimas, tentamos escapar, erguemos as mãos, sucumbimos. Em contraponto, nos corações endurecidos, repletos de rejeitos, pulsam cifrões, indiferentes porque acham que é melhor faturar do que ser gente.
Há culpados? Claro que há. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, teve quer ir lá e dizer isso. Os seres humanos angustiados precisavam de um bálsamo. É jurídico? Não. É profundamente humano. Não há prova de nada? Já há quem tenha o atrevimento de dizer, o que é profundamente desumano. Talvez, no futuro, culpados sejam absolvidos por excesso de provas. A lama, que envolve e engole, também pode ter cor jurídica.
Foi numa hecatombe? Não. Foi o imponderável das forças da natureza? Não. Foi previsível? Sim. Foi a ceifa implacável de vidas porque “técnicos” preferiram a omissão em forma de imperícia, negligência e imprudência? Foi. É possível saber de um risco e dizer que ele não existe? É. Aqui, entram os insondáveis meandros da alma humana, capaz e coisas inacreditáveis.
Talvez por isso, Vieira, o padre, tenha escrito num dos seus sermões que a omissão é o pior dos pecados.
Pior? Sim, porque é um pecado que se comete não fazendo absolutamente nada.
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