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Sangue frio, sangue quente

Famílias dizimadas e brutalidade humana em dois episódios: um nos Estados Unidos, outro no Brasil 

Arquivo Vivo|Percival de Souza, da Record TV

Truman Capote, autor de 'A Sangue Frio': estilo fascinante e livro da vida
Truman Capote, autor de 'A Sangue Frio': estilo fascinante e livro da vida Truman Capote, autor de 'A Sangue Frio': estilo fascinante e livro da vida

Dois casos, duas famílias dizimadas, interligam a brutalidade humana, que pode ser contada em vários episódios. Um, nos Estados Unidos. Outro, no Brasil. Na pequena Holcomb, no oeste de Kansas, uma família inteira — casal e dois filhos — foi morta dentro de casa. No Brasil, um homicídio múltiplo, de uma família de dez pessoas, aconteceu no Distrito Federal e adjacências.

Lá, homicídios ao mesmo tempo, com motivação estúpida: roubar um binóculo, um rádio de pilha e uma espingarda. Aqui, apoderar-se de 400 mil reais, produto da venda de uma casa.

Analisar ambos os casos requer profunda investigação, bom senso, conhecimento pleno dos fatos e sensibilidade suficiente para elaborar um relato não burocrático, que não seja dependente de teses ocas, ignorância acadêmica, desprezo pelo primado do real e apreço às fantasias e ficções delirantes. Chegaria a ser frustrante.

No caso dos Estados Unidos, os dois criminosos autores da chacina, Perry Smith e Richard Hickock, foram descobertos, condenados à morte e enforcados. No Brasil, os três autores estão na fila do julgamento, que ninguém sabe quando vai acontecer nem muito menos quais poderiam ser as penas que os assassinos merecem — e, é claro, sem as absurdas progressões de pena e as tenebrosas “saidinhas” temporárias, cujos resultados são lamentáveis.

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Nos EUA, houve um escritor renomado, Truman Capote, que se dedicou ao episódio desde o princípio das investigações: todo o desenrolar, a elaboração do processo, o julgamento e a execução na forca. O estilo de Capote, fascinante pela capacidade de escrever e descrever em A Sangue Frio, foi lido em sua primeira parte pelo autor, antes de ser publicado, num teatro lotado em Nova York. A plateia aplaudiu-o de pé. Glória literária, o nascimento do chamado “novo jornalismo”, a forma de narrar como se fosse um romance. Talento e arte, uma escola que me inspirou muito quando comecei a trabalhar na área criminal.

Curioso isso, porque, se de um lado Capote é referência obrigatória, de outro agrupam-se os que acham — muitos deles acadêmicos que fugiram da Academia — que a obra poderia ser reduzida apenas a um relato “sensacionalista”. Ridículo e falso. Mentira. Cegueira deliberada com única intenção de contestar, sem contrapor conteúdo algum.

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O processo criminal é por natureza gelado. Nos nossos códigos, oriundos do século passado, não existe espaço para definir sentimentos como a maldade, a ganância, a estupidez, a ambição, como se nada disso integrasse o nosso gene. Os textos legais são dominados por escapismos e sinônimos, camuflando a realidade que não conseguem decifrar.

Vejamos, então. A filósofa alemã Hannah Arendt conceituou uma fórmula que seria adequada para olhar com lentes de aumento os casos de Holcomb e do Distrito Federal. Em ambos, prevaleceu e dominou o que ela chamou de “banalidade do mal”. Ou seja: a brutalidade aplicada nas duas famílias trucidadas passou, entre nós, a ser habitual e corriqueira, uma autêntica perversão social, da qual não deveríamos, jamais, nos acostumar.

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Teses pueris pretendem garantir, mas jamais garantirão, que fazer o que se deveria em casos como esses seria um lamentável comportamento de “retribuição”. Sendo assim, nada importam as dolorosas reações das vítimas, feridas na alma, inconformadas e sem entender o que certos “especialistas” (?) opinam sobre suas dores profundas, feridas que não cicatrizam.

Aí, sem Capote e agora com Victor Hugo, outro grande escritor, poupar os lobos vem a ser condenar as ovelhas à morte. Ande por aí, saia das suas bolhas, e perceba que é assim mesmo. Winston Churchill, o estadista, bem dizia que é perigoso alimentar um crocodilo na vã esperança de que ficará como o último a ser devorado. De fato, o réptil anfíbio pode até ser sedutor, com suas mandíbulas gigantescas. Elas devoram, quer você queira ou não. Delírios pensantes eventuais também vão ser engolidos. Não sejamos kamikazes, portanto.

Caindo na real

Melhor cair na real, como aprendemos ao longo da vida, do que tentar ficar de pé, usando fantasias variantes para sustentar o equilíbrio. Bem sabemos que isso não funciona.

Holcomb, Distrito Federal: quem tomou conhecimento dos dois ataques brada e clama. “Queremos justiça” é o grito diante da banalização de Arendt trasladada para o dia a dia. Mas o que quer esse pedido, que pretende ser uma exigência, quase sempre inútil? É a aplicação daquilo que deveria ser justo, “justitia”, por sua vez acompanhada do acréscimo “ius”, aquilo que é direito e correto. Distribuir a justiça, enfim. Exatamente por isso, o grego Aristóteles sustentava que a lei é o juiz mudo: está pronta a dizer, e sem olhar a quem, pois seríamos todos iguais. Somos?

Cartesianamente falando, para não dizer pragmaticamente, vemos nos casos das chacinas que valores entraram em colapso, pois olhos que não conseguem ou não sabem ver levam ao desmoronamento social. É a perigosíssima caverna mitológica de Platão, igualmente tema do escritor José Saramago, nosso primeiro prêmio Nobel de literatura em língua portuguesa.

Não se pode conferir às transgressões sociais, sob qualquer formato, crimes que bandidos querem classificar como “respeitáveis”, do mesmo modo como os mafiosos imaginam que possam definir a si próprios como “homens de honra”. Mas como? Respeitável? Honra?

Os ceguinhos deliberados, que infestam nossa sociedade, parecem querer provar que a vida criminosa está bem acima da lei, pelo simples fato de que a lei não se aplica nas ruas e o que se assiste nas ruas não é previsto pela lei. Um descompasso, portanto, a exigir reequilíbrio. Uma nova calibragem naquela balança que Têmis, a deusa da Justiça, segura nas mãos.

Buracos reais

Brasília — Elizamar, cabelereira, vendeu uma pequena propriedade e tornou-se portadora de 400 mil reais. A família toda sabia. Três crápulas planejaram apoderar-se desse dinheiro. Ficaram pensando por um tempo e traçaram um plano macabro: matar Elizamar e três crianças, seus filhos, e não deixar rastros, estendendo a morte a todos os membros da família.

A mulher foi levada com os filhos para um cativeiro, torturada para que obtivessem a senha de seus cartões, assassinados, corpos colocados dentro de um carro, levado para um ponto ermo onde seria carbonizado com os cadáveres no seu interior.

Mais tarde, seria encontrado, enterrado no quintal, o corpo de um homem esquartejado. Mais corpos foram localizados dentro de uma cisterna. E outros, também carbonizados num carro, numa cidade mineira próxima.

Holcomb: o casal Herb e Bonnie foi surpreendido junto com dois filhos adolescentes. Os algozes pretendiam roubar, mas não sabiam exatamente o que poderiam encontrar. Como foi pouca coisa, os dois matadores, decepcionados, decidiram acabar com a vida de todos. Tiros de espingarda. Mãos e pés amarrados. Bocas amordaçadas.

Não há palavras suficientes para descrever tais atos. Mas saiba que a banalização do mal trafega hoje, impunemente, por toda parte. Execuções cruéis e sinistras. Corpos incendiados. Corpos enterrados. Crime que se diz organizado é aceito como dominante e capaz de ditar ordens sinistras dentro das muralhas prisionais ou fora delas. Criminosos com status. Assassinos soltos e nem sequer identificados. Ladrões atrevidos e maus.

Medo. Como descreveu Capote, quando essa sensação invade os corações, não adianta colocar tranca nas janelas. É certo que trocamos as trancas por arames farpados, cercas eletrificadas, alarmes sonoros, câmeras vigilantes e grades.

Capote fez o livro da vida e também o último. Assistiu à execução de um dos assassinos, Perry Smith. Nunca mais escreveu.

Está aí a lição de Capote e seu “In Cold Blood”, A Sangue Frio. Lá e aqui. Também aqui e lá, a sangue quente, escorrendo fervilhante.

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