Só a imprensa tem culpa no escândalo da "escolinha do sexo"?
Arquivo Vivo|Percival de Souza
O episódio completa 24 anos no mês que vem. Serviu de base para escraches e concepções contemporâneas do calcanhar de Aquiles. A imprensa foi sacrificada em praça pública, as Faculdades (principalmente as de jornalismo) se empenharam em mergulhar os discípulos de Gutemberg no círculo infernal de Dante. Tudo pode estar equivocado, direcionado, teleguiado. Mirai-vos, para o que lhes aprouver, no grande exemplo da Escola Base. O bode expiatório já foi imolado no altar alimentado pela hipocrisia e incompetência.
Para o sacrifício, a escolha foi cuidadosamente seletiva. Entenda-se por “imprensa” dois jornais popularescos falecidos, Notícias Populares e Folha da Tarde. O primeiro deu em manchete, em 1994, que a escolinha era do “sexo” e a perua de transporte escolar seria “motel”. O segundo, que crianças eram levadas “para a orgia”. Sobraram respingos para o Estadão e caldeirões ferventes para Rede Globo.
O que fizeram os algozes da comunicação? Contaram que uma discreta delegacia, no bairro do Cambuci, o 6º Distrito Policial, recebeu denúncia, feita formalmente por mães de crianças, acusando que elas teriam sido abusadas numa perua escolar (Kombi) da Escola Base (no bairro da Aclimação, em São Paulo).
O caso alcançou grande repercussão. Afinal, não é mesmo de se tolerar que crianças sejam criminosamente molestadas. Sobrou chumbo grosso para os donos da escola, o casal Icushiro Shimada e a mulher, Maria Aparecida Shimada. A Escola foi filmada e fotografada e, logo a seguir, depredada. A fúria coletiva direcionou-se à escola.
O tempo foi serenando os ânimos exaltados e, aos poucos, constatando que não tinha sido bem assim. Não havia acontecido abuso nenhum. Mas o estrago moral — enorme, destruidor, irreparável — já havia sido feito. Começou a busca aos novos culpados. Alguém teria que ser responsabilizado, de forma imediata, institucional ou pessoalmente. A nova caça, agora ao bode expiatório. Mas que bode é esse?
A expressão remonta aos tempos antigos, mais precisamente às narrativas do livro de Levítico, no Antigo Testamento. Sobre o tal bode eram despejadas as culpas alheias. Os pecados. A escolha do caprino era aleatória. Separado do rebanho, era arbitrariamente reservado para o sacrifício, num ato solene: o sacerdote colocava-lhe a mão na cabeça, confessava os pecados de todos, que assim eram purgados. O bode da expiação, ou seja, o bode expiatório, centralizava todos os malfeitos possíveis, factuais ou secretos, e a absolvição ritualística, no futuro transformada em pagamentos indulgentes à Igreja Romana, uma das motivações do indignado protesto de Martinho Lutero, afixando vigoroso protesto em 95 teses afixadas à porta do castelo de Wittemberg, em 1517.
Há culpados pela pulverização moral que aconteceu na Escola Base? Incontroverso: há. Foram responsáveis somente os representantes da mídia seletiva? Não. Depois que o bode foi imolado, fica mais fácil e mais cômodo adotar o “consumatum est” e deixar tudo mais para lá. Já falei sobre esse assunto em comissões parlamentares de inquérito, em cursos de graduação e pós-graduação. Sem teses e com foco nos fatos, surpreendi a muitos, simplesmente por revelar em minúcias tudo o que havia acontecido. Acompanhei o caso pelo Jornal da Tarde. Sei do que falo e sobre o primado do real quase ninguém quer saber. Ou não sabia. A ignorância jurídica é grande no País.
Vejamos: mães lacrimejantes denunciaram o caso ao 6º DP. Boletim de ocorrência no plantão, posterior instauração de inquérito policial pelo delegado titular, Edelcio Lemos. Fato: é assim que funciona o nosso brasileiro ordenamento jurídico, a nossa persecução penal. Não tem outro jeito: está esculpido na nossa lei maior, a Carta Magna, a Constituição brasileira. Confira: artigo 144, artigo IV, inciso quarto, ipsis litteris: “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícias de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais...”.
O abuso das crianças alunas da Escola Base seria uma infração penal. Quem se encarrega de apurá-la é o delegado da Polícia Civil. É ele quem instaura inquérito, investiga, colhe provas, examina laudos variados, e ao final, somente ao final, opta por indiciamentos ou não e formular eventualmente pedido de decreto de prisão preventiva.
Vejamos aqui um paralelo acadêmico, constatando que a Academia também pode ser moderno templo fariseu. Ao fazer um trabalho de conclusão de curso, mestrado, pós-graduação e doutorado, o aluno elege um tema para discorrer, elabora as pesquisas necessárias e, ao final, chega às sujas conclusões acadêmicas. Deveria ser assim. Mas não é. Porque se escolhe um tema, com uma concepção apriorística, na pretensão de que os fatos se ajustem ao já pré-concebido. Não é honesto intelectualmente. Nem acadêmico.
Mutatis mutandis, mudando o que deve ser mudado: na elaboração de uma reportagem, principalmente a investigativa, o jornalista pode começar pensando uma coisa e no curso da apuração descobrir que se trata de outra. Num inquérito policial, idem: de início, aparências e indícios rumam numa direção e, no curso das chamadas diligências, descobre-se a verdadeira face da realidade. Na comparação, ressalte-se: o jornalista não tem poder de polícia, necessita das fontes jurídicas e, se tiver competência na área, poderá questionar, fazer cobranças e, diligente, chegar às suas próprias descobertas. A expressão “quarto poder” engloba isso, não institucionalmente, mas por necessidades sociais. É o momento brasileiro: quando os Poderes de Montesquieu deixam de cumprir o seu papel, bate-se em desespero à porta da imprensa. Está nela uma última esperança. As redações são pátio de milagres.
Bode no altar, pode se tornar tentador. Mas não vos deixes cair na tentação de colocar fatos de lado. O 6º DP é uma das unidades da 1ª Seccional (Centro) de Polícia. Na época da Escola Base, seu titular era o meu considerado Gerson de Carvalho, delegado íntegro e competente. Sugeri a ele que avocasse o caso, isto é, tirá-lo da delegacia do Cambuci e passar para a sua jurisdição hierarquicamente superior.
E assim se fez: novos depoimentos, crianças ouvidas na presença de psicólogo, mães titubeantes confrontadas com os fatos e, principalmente, laudos complementares do Instituto Médico Legal. Resumo: não havia prova de nada. Publiquei isso com exclusividade no Jornal da Tarde. Está registrado nos arquivos do jornal, não desaparecerá. Algum “pesquisador” contou nisso? Não. Mesmo sabendo. Ofuscaria a tese do bode...
Por causa da minha revelação, um advogado, José Fernando Rocha leu, se ofereceu para entrar, a favor do casal, com uma ação de indenização contra o Estado por danos morais. Minha matéria foi anexada aos autos. Rocha conseguiu. Alguém contou? Não. Acharam melhor continuar deixando o bode feder.
Há mais, porém. Fato: nossa Constituição estabelece, no seu artigo 129, quais são as atribuições do Ministério Público, entre elas promover, privativamente, a ação penal pública, parágrafo 1º, e exercer o controle externo da atividade policial, parágrafo 7º. Quer dizer: um processo só tem início se houver denúncia oferecida por ele, que é titular da ação penal. E se houver alguma irregularidade no inquérito, o Parquet não só pode, como deve interferir para corrigir. Assim está escrito na Constituição.
Que fez o Ministério Público no caso da Escola Base? Não só endossou tudo, absolutamente tudo o que a Polícia havia feito, como ainda pediu ao Judiciário a decretação da prisão dos acusados. Inquérito, denúncia, autos no topo do sistema. Ato final: que fez o juiz? Decretou a prisão do casal. Mais um fato.
Mas o bode imolado foi o da imprensa. Foram poupados os bodes da promotoria e da magistratura. A rigor, portanto, são três os bodes, e as expiações teriam que ser rigorosamente distribuídas em partes iguais. Injustiças repartidas.
Ichushiro morreu, infarto do miocárdio, aos 70 anos de idade, há quatro anos. Foi sepultado no cemitério da Vila Formosa. A esposa, Maria Aparecida, faleceu vítima de câncer sete anos antes e foi sepultada em Nova Granada, interior de São Paulo. O que o casal Shimada sofreu em vida foi irreparável. Não há o que pague o sofrimento deles. Nem com um bode. Ou com três.
Aos palpiteiros da Escola Base, corregedores da humanidade e arremessadores de pedras, uma lição com vários bodes que eles não vão ousar analisar: o que fazer caso se considere que delegados, promotores e juízes não seriam confiáveis? Não se poderia confiar em nenhum deles? Que reportagem se faz assim? Consideração final: o delegado-bode foi transferido da delegacia no Cambuci para a Academia de Polícia, como mestre de futuros policiais e em cursos de aperfeiçoamento. Ninguém abriu o bico, preferiu-se a passividade, mas o bode nada cheiroso ficou na sala. Sala de aula... do promotor e do juiz da Escola Base, ninguém fala. Mas eles são bodes, também.
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