Não há número suportável para letalidade, diz comandante da PM
Ao R7, coronel Marcelo Vieira Salles afirma que mortes de civis pela polícia são indesejáveis e que tratamento na periferia deve ser o mesmo que nos Jardins
São Paulo|Kaique Dalapola e Márcio Neves, do R7
O novo comandante da Polícia Militar do Estado de São Paulo, coronel Marcelo Vieira Salles, considera "expressivo" o número de pessoas mortas pela PM e acredita que a "instrução e aprimoramento do trabalho" são caminhos para diminuir a quantidade de vítimas em casos registrados como "morte decorrente de oposição à intervenção policial".
Em entrevista ao R7, o coronel afirmou: "Não há número, a morte é totalmente indesejada". No sábado (12), a policial militar Katia Sastre matou um suspeito em frente à escola da filha, em Suzano (Grande SP). A intervenção policial que resultou em morte recebeu homenagens do governador Márcio França (PSB) — que também é pré-candidato ao governo de São Paulo.
Salles afirma que recomenda que todos os seus policiais na corporação tratem as pessoas de forma igual, independentemente de estar em regiões nobres ou periferias, e diz acreditar no "aperfeiçoamento das condutas". Para ele, as diferenças nas ações policiais existem de acordo com o "histórico do local".
Perfil
Marcelo Vieira Salles está na Polícia Militar há 35 anos — entrou na Academia de Polícia Militar do Barro Branco aos 17 anos como aluno-oficial. É bacharel em direito, mestre e doutor em ciências policiais de segurança e ordem pública.
O coronel também já foi ajudante de ordens do ex-governador Geraldo Alckmin, quando ficou amigo do então vice-governador Márcio França, e chefiou o Policiamento de Área Metropolitana 5, responsável pelo policiamento na zona oeste de São Paulo.
Salles também comandou a Cavalaria e a Rota (Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar). O comandante da PM ainda foi coordenador da Defesa Civil no Estado de São Paulo e secretário-chefe da Casa Militar do Governo de São Paulo.
Leia a entrevista com o comandante:
R7 — O número de casos registrados como ‘mortes decorrentes de oposição à intervenção policial’ é considerado alto? O que fazer nesse sentido?
Marcelo Vieira Salles — Uma vez me perguntaram qual que seria o número de letalidade ideal ou suportável. Não há número, a morte é totalmente indesejada. Por isso, precisa de instrução, aprimoramento do trabalho, uma acentuada prevenção primária do policial. Ele tem que estar preparado. Porém, a opção do confronto é sempre do infrator da lei. Quando ele resolve praticar um ilícito, quando ele coloca uma arma na cintura, seja um revólver, uma pistola ou um fuzil, ele já está se expondo ao risco.
"Em algumas situações%2C o confronto não é a opção do policial"
Os números são expressivos, mas eu vou dar um outro dado: em 2017, foram presas 152.448 pessoas nesse tipo de situação. Se comparado com essas 687 mortas por PMs em serviço, os mortos representam 0,45% das pessoas presas. Não é uma polícia orientada para matar. O dia em que nós encontrarmos nos conteúdos programáticos dos nossos cursos e estágios alguma coisa nesse sentido, aí nós temos que nos preocupar. A nossa ideia, nosso discurso e a nossa obrigação são a preservação da vida de todos os lados.
Nossa orientação é sempre a prisão. Porém, em algumas situações, o confronto não é a opção do policial. O policial sempre age, ele reage, até por imposição da lei. Nós temos que reagir dentro da legítima defesa. E o nosso policial, na maioria das vezes, se vê impelido, está reagindo, protegendo a sua vida, do seu filho, da sua esposa ou de um terceiro.
R7 — O que é feito em relação ao número de policiais militares mortos por causa da função?
Salles — Nós estamos investindo muito nessa requalificação do policial durante o treinamento. As próximas Instruções Continuadas de Comando já serão publicadas com esse condão, ou seja, nessa prevenção primária do policial, por ele estar naturalmente mais exposto. Eu vou dar um dado: hoje a taxa de homicídios do Estado de São Paulo é de 7,57. A do policial militar, comparado com 100 mil habitantes, é quatro vezes mais do que um cidadão.
A Polícia Militar é uma instituição que tem pessoas que, infelizmente, colocam sua vida para o cumprimento do dever, honrando o juramento mesmo às vezes estando em situações covardes — que o infrator da lei submete o nosso policial. A opção do confronto é sempre do infrator da lei, porém, o policial, se vendo nessa situação, é obrigado a reagir na legítima defesa e, por vezes, morre. Estamos muito preocupados com eles.
R7 — Como será a relação da PM com a imprensa sob seu comando?
Salles — Sem a imprensa não há democracia. E isso não é retórica, é um princípio. Muitas vezes, ações de não conformidade na atuação policial que nós temos notícia, muito vem da imprensa. Até é a origem de processos administrativos, inquéritos policiais militares e todo o procedimento. A imprensa deve ser respeitada. Todos têm que ser respeitados no seu trabalho. O nosso papel é fundamental na democracia também. É preciso respeitar aqueles que estão trabalhando.
A gente sabe que em situações que eclodem, situações mais tensas, eventualmente, podem haver algum tipo de distrato. Sendo identificado, ele tem que ser apurado e tem que ser exigido nos nossos estágios de aperfeiçoamento profissional, nos nossos cursos de formação, de especialização, temos que continuar e reafirmar a ideia de que, quanto mais imagens, quanto mais transparência, melhor.
R7 — Tem algo especifico no treinamento do policial militar que orienta nesse tipo de casos?
Salles — O policial é sempre orientado para atuar dentro da lei. Em eventuais desvios de conduta, seja com truculência com qualquer pessoa, deve ser apurado de maneira criteriosa, porque o nosso papel ali é a preservação da ordem pública. A orientação institucional é o respeito a todas as pessoas, sejam elas jornalistas, nas abordagens policiais. Nós temos procedimentos operacionais padrão. Sempre no respeito da dignidade da pessoa humana. Então, caso identificado, tal conduta tem que ser apurada e o policial que eventualmente se excedeu, ser responsabilizado, respeitando o devido processo legal.
R7 — Como identificar um PM que remove a identificação e/ou usam códigos de 14 dígitos no lugar?
Salles — A identificação existe. Esse código é o nosso registro estatístico, é o nosso RE. Então é o número dele. Em qualquer polícia do mundo é assim. Esse número é o número que você entra em uma instituição e ele é o número correspondente ao lugar dele na instituição. Então ele está identificado pelo número. Os policiais com nome e com colete, nós temos essa preocupação. E não são 14 dígitos, o meu são sete dígitos.
R7 — Você considera plausível ter que identificar um PM que usa códigos na identificação?
Salles — Essa é uma sistemática que vem sendo usada, mas podemos estudar o aprimoramento disso, não há problema nenhum. É o que eu digo: onde houver interesse público, nós estaremos. Se eventualmente há algum conflito nisso e que prejudique de alguma forma a identificação, vamos estudar sim. Mas tem manifestações que demoram cinco, seis horas. Então isso pode até, em algum momento, recrudescer quando começam a partir para as ofensas pessoais por causa de um nome de policial, por exemplo. Um policial que tem um nome diferente a pessoa já verifica e acessa. A legislação prevê a identificação, só que ela não traz que seja nominalmente, pode ser pelo número, como empregado em outras polícias do mundo também. O importante é que ele esteja identificado, seja por número seja por nome.
"Não podemos conceber uma diferenciação da periferia ou do Jardins"
R7 — Existe diferença entre as abordagens policiais no bairro nobre e nas periferias?
Salles — Não há diferença, nós possuímos um procedimento operacional padrão nesses casos. A situação na abordagem ocorre de acordo com a dinâmica da ocorrência. A abordagem policial é única, mesmo porque a nossa instituição tem quase 90 mil homens e mulheres. São Paulo é um país, então, não só na abordagem policial, mas na conduta policial de maneira geral, tem que haver um procedimento operacional padrão. Não podemos conceber, sob qualquer aspecto, uma diferenciação da periferia ou dos Jardins [bairro nobre de São Paulo]. Nós temos que trabalhar pelo cidadão paulista, dentro dos ditames da lei e que o cidadão merece e requer. Eu afirmo como comandante-geral dessa instituição: a Polícia Militar preconiza, orienta e insiste que temos que atuar de maneira idêntica, de maneira uniforme, em todos lugares, seja nos Jardins, seja na periferia.
R7 — Reportagens e relatos demonstram que existe diferença entre ações policiais em eventos das periferias [como baile funk] e dos bairros mais nobres [como festas universitárias]. Isso é um ponto que a PM precisa mudar?
Salles — Eu acredito no aperfeiçoamento das condutas. Acredito no conhecimento como instrumento de mudança de comportamento. Eu comandava a zona oeste até ser nomeado comandante-geral. Lá temos 203 comunidades que, em muitas, têm esses eventos que acontecem muitas vezes por falta de opção de diversão, de entretenimento. A polícia, quando chega em um local, tem a avaliação do risco. Com a minha experiência lá na zona oeste, com o Baile da 17, por exemplo, lá do Paraisópolis, o que eu fiz: começamos desde 18h, com a operação do trânsito, e demonstrando que a instituição ia ter uma atuação ali. Tinha até um caráter dissuasor. É o aprimoramento do trabalho.
Mas, por vezes, quando acionados para atender onde tem uma perturbação do sossego, o carro chega com dois policiais, e muitas das vezes a polícia é recebida com garrafas, com tiros e com pedras, seja na periferia ou no bairro da universidade. A Polícia Militar tem procedimentos muito concretos, já consagrados. Mas quando atende uma situação de perturbação de sossego grave decorrente de um baile funk, como o Baile da 17, por exemplo, que tem 30 mil pessoas — o que corresponde a um Pacaembu cheio em dia de decisão — com uso de álcool, de entorpecente, com crianças. Então para atuar, começamos com esse trabalho ao lado, nas 27 entradas, com controle, com entrada tática, com um convencimento e com trabalho junto a outros órgãos, como a prefeitura e conselho tutelar, porque às vezes nos deparamos com crianças e com adolescentes. Essa experiência foi muito exitosa. Mas nós temos outras ocorrências para atender. Então a gente tem que priorizar, mas sempre procurando respeitar as pessoas, essa é orientação do comando-geral da instituição.
R7 — O que fazer para tornar a Polícia Militar mais transparente?
Salles — A PM é transparente, só que é como eu disse, eu acredito no aprimoramento. Mas em determinadas situações, por exemplo, você pode me fazer uma pergunta sobre um determinado caso que ocorreu ontem. Eventualmente, eu não posso falar sobre esse caso, porque no final sou eu, com essa caneta, que irei fazer a demissão. Se eu fizer qualquer juízo de valor antes, com o comandante do batalhão que vai falar no inquérito, que vai falar de sindicância, que vai falar na investigação preliminar. Isso pode ser utilizado e, às vezes, é uma conduta inadequada.
R7 — Você considera que a polícia prende e a Justiça erra em solturas?
Salles — Há duas faces nessa colocação que vocês me fizeram. A primeira: por vezes há frustração, sim. Eu acho que em algum momento deveria ser revista a Lei de Execução Penal, o cumprimento de um sexto da pena, a progressão de regime. Às vezes, o juiz é um escravo da lei. A audiência de custódia é uma tendência mundial. Ela é um instituto que tem o condão de fazer um reparo de uma injusta prisão. Por outro lado, a forma como ela é utilizada que nós temos que pensar. Eu acredito até no processo sumaríssimo na prisão, na instrução e no julgamento. Hoje, se você for, por exemplo, para os Estados Unidos, o processo é sumaríssimo. Você vai para a corte, aquilo que a polícia amealhou ali do crime, ela é colocada, é feita a instrução e já sai dali com a decisão da Justiça, seja a absolvição ou a condenação.
"Somos os maiores interessados em que casos de encontro de simulacros de arma%2C de entorpecente%2C sejam identificados"
R7 — Como a polícia deve agir em casos como encontros de 'kit flagrantes' com policiais militares?
Salles — Nós temos uma Corregedoria muito forte, nós temos regulamentos muito fortes. Nós somos regidos pelo Código Penal Militar, pelo Código de Processo Penal Militar, e subsidiariamente pelos demais códigos. Toda vez que isso ocorre, ele [o policial encontrado com o kit] é repelido de plano pela instituição. Em muitos dos casos, nessas revistas de alojamento e de viaturas, é o sargento que identificou, o tenente que identificou, é a Corregedoria que identificou. Então, a origem da maioria das prisões nesses casos é na Polícia Militar.
Nós somos legalistas. Condutas como essa, por vezes, colocam em dúvida tudo o que foi feito anteriormente. Nós somos os maiores interessados em que casos de encontros de simulacros de arma, de entorpecente, sejam identificados e os policiais com esse tipo de conduta sejam responsabilizados, respeitando o devido processo legal e o princípio da ampla defesa, mas serão responsabilizados absolutamente nos termos da lei. Os policiais são os maiores interessados em que essas situações sejam dirimidas dentro da lei.
"Não há área de exclusão onde a Polícia Militar não entre"
R7 — Existe algum lugar no Estado de São Paulo em que a Polícia Militar não entra?
Salles — Não há bolsões de criminalidade em que a Polícia Militar não entre. Ela entra em todos os lugares do Estado de São Paulo. Algumas situações, com um pouco mais de cuidado diante do histórico de determinada situação, mas nós temos uma polícia preparada, um Estado onde não há bolsões que a polícia não entre. Não há área de exclusão onde a Polícia Militar não entre.
R7 — Pode dar exemplo de lugares em que a PM precisa de 'mais cuidado'?
Salles — Eu te dei o exemplo do Paraisópolis. Você tem um número muito grande de pessoas vivendo em um espaço muito pequeno. Tem casas com vários andares, tem um número muito grande de pessoas e requer o cuidado nessa entrada porque, às vezes, determinado lugar é ponto de tráfico de entorpecente e nós sabemos que nesses pontos, a experiência nos diz, de encontro de arma, de entorpecente, de recrudescimento da ação criminal, você tem que tomar alguns cuidados. Mas não há histórico de local que a gente não possa entrar. Lógico, determinadas posturas, determinadas condutas, devem ser adotadas de acordo com o histórico daquele local. Às vezes, um ponto de venda de drogas [representa] uma situação mais complicada.