A abstenção e o triunfo da rejeição
Na eleição da abstenção, prevaleceu o Campeonato do Veto
Eleições 2024|Vladimir Porfírio, especial para o R7
A abstenção, marcada de forma emblemática pelo número de 31% de ausentes no segundo turno em São Paulo, pode esconder uma tendência tão perversa quanto envergonhada.
Amparada pela crescente desilusão que a política brasileira provoca, essa percepção trouxe uma mensagem que aponta os atalhos para o descrédito da democracia como instituição.
O exame dos resultados indica que não se pode deixar ignorar a impressão de um campeonato de rejeições, a cada eleição. Uma dinâmica que inverte a lógica original do voto, como expressão de aprovação para a maioria consultada.
Está claro que, hoje, um largo contingente de eleitores sai de casa menos para eleger alguém em quem confiam e mais para barrar quem lhes causa repulsa.
Não se trata de um palpite, dissociado de razões consistentes. Bastaria recuperar os números dilatados das rejeições, apuradas nas pesquisas das últimas eleições. Inclusive, estas para prefeito e as anteriores para presidente e governadores.
Fortaleza talvez seja a síntese desse fenômeno: lá, o eleitor não foi às urnas em apoio apaixonado, mas para evitar a vitória de um nome rejeitado. Movido por um impulso de veto — um “asco” existencial, como dizia Sartre —, o fortalezense compareceu para impedir o que parecia insuportável. Goiânia, por sua vez, trouxe uma virada inesperada no segundo turno, com os votos de Adriana Accorsi, do PT, que estava fora do segundo turno. Esse avanço não foi tanto uma vitória das convicções, mas o reflexo da rejeição ao adversário bolsonarista, que não conseguiu angariar novos votos após o primeiro turno.
Porto Alegre e Belo Horizonte seguiram a mesma lógica, e no Rio de Janeiro, Eduardo Paes garantiu a vitória no primeiro turno, não por uma intensa aprovação, mas porque sua posição ao centro o poupou do peso da rejeição.
Eleitor sem consciência
Vemos, então, uma eleição onde o veto se sobrepôs à aprovação, e onde a escolha do “menos rejeitável” tornou-se a tônica. Mas essa tendência de rejeição revela algo ainda mais profundo: a desconstrução da consciência cívica do eleitor brasileiro. Em meio à polarização crescente e à guerra ideológica travada nas redes sociais, a sociedade mergulha num jogo de prós e contras que dilui a essência do voto como um ato construtivo. Cada vez mais, o discurso dominante nas plataformas digitais ataca as bases do sistema democrático e semeia o desinteresse pelo processo eleitoral. Ao invés de engajamento, cultivamos a negação.
A crise da democracia é também uma crise de propósito. O crescimento da abstenção é o espelho de uma população desencantada, bombardeada por narrativas que colocam em dúvida a legitimidade do próprio sistema. Quando figuras públicas, sem compromisso com o estado democrático de direito, ecoam essas dúvidas, criam uma erosão de confiança que se reflete nos números de abstenção e na perda de prestígio do processo eleitoral. Os eleitores se retiram do campo de jogo, descrentes de que suas escolhas possam realmente fazer a diferença.
O ministro Padilha, entretanto, tem toda razão em suas análises, repercutidas junto ao presidente Lula e a presidente do PT Gleisi Hoffmann. Ele é cirúrgico ao pontuar o que chamou de “tsunami de reeleições”, um fenômeno que se explica, em parte, pelo desejo de estabilidade de uma população esgotada por crises.
A reeleição tornou-se um abrigo seguro em tempos de incertezas — e isso foi particularmente reforçado pela pandemia, que minou a capacidade de renovação da política, enquanto as redes de proteção social se diluíam. Mas a estabilidade trazida pelas reeleições não pode ser separada do impacto de mecanismos como o orçamento secreto e as “emendas Pix” que abasteceram administrações locais e criaram uma moeda de troca eleitoral poderosa.