Nas últimas décadas, a China passou por uma transformação econômica sem precedentes, tornando-se uma potência tecnológica que rivaliza diretamente com os Estados Unidos. Por trás desse crescimento impressionante, há um modelo marcado por forte intervenção estatal, investimentos massivos e uma rígida estrutura de controle político.A ascensão chinesa ainda trouxe consigo desafios globais, incluindo a intensificação da guerra comercial com Washington e um crescente debate sobre as condições de trabalho e a relação entre o Estado e o mercado chinês.Enquanto Pequim reforça seu domínio em setores estratégicos como inteligência artificial, veículos elétricos e energias renováveis, a repressão a dissidentes, o monitoramento da população e as denúncias de trabalho forçado continuam a gerar questionamentos sobre o custo humano do chamado “milagre econômico chinês”.Nos últimos 45 anos, a China experimentou um crescimento extraordinário, que pode ser descrito não apenas como uma aceleração econômica, mas também como uma transformação estrutural.“A China é um caso extraordinário, não só de crescimento econômico, mas também de desenvolvimento econômico, porque a gente está falando de elevadíssimas taxas de crescimento desde 1978, com redução da pobreza e com transformação estrutural”, observa Isabela Nogueira, professora do Instituto de Economia e coordenadora do LabChina da Universidade Federal do Rio de Janeiro.A China “transitou para uma economia de mercado com intensa intervenção estatal” e isso a diferencia de outros modelos globais, sendo descrita como um exemplo de “capitalismo de Estado”, em que o governo exerce controle estratégico para direcionar o crescimento.“Essa capacidade do Estado de moldar, dar incentivos, executar políticas, ter a visão de longo prazo e ir apostando em diferentes agentes dentro dessa economia foi crucial para esse processo”, analisa Isabela.O modelo chinês também inclui políticas industriais robustas, investimentos maciços em ciência e tecnologia e controle rigoroso sobre o sistema financeiro. “Os principais bancos são estatais. Existe um enorme controle sobre os fluxos financeiros, o que limita a financeirização da economia e permite canalizar recursos massivos para indústria, inovação e tecnologia”, explica.A China, portanto, não seguiu o caminho de muitos outros países que se destacaram no cenário global por meio das exportações. “Nunca foi um caso clássico de crescimento puxado pelas exportações, como Coreia do Sul ou Taiwan. Seu crescimento sempre foi fortemente impulsionado pelos investimentos em ativos fixos”, destaca a especialista.Isso significa que, embora as exportações desempenhem um papel fundamental, a principal força motriz por trás do crescimento chinês foi o maciço investimento interno.No entanto, um dos desafios enfrentados pela China na atualidade é transitar para um modelo mais dependente do consumo doméstico. “O país enfrenta dificuldades para chegar a um modelo mais dependente do consumo doméstico em parte porque não tem um estado de bem-estar social robusto”, observa Isabela.Esse cenário faz com que as famílias sejam “muito poupadoras”, já que precisam garantir previdência, saúde e educação de qualidade, serviços que não são amplamente fornecidos pelo Estado.“As famílias ficam com receio de gastar, poupam mais e não são grandes gastadoras, porque não sabem quem vai garantir previdência, saúde e educação de qualidade para elas”, comenta Isabela.Embora a China tenha demonstrado impressionante resiliência e capacidade de adaptação às condições globais, a guerra comercial contra os Estados Unidos e o impacto das tarifas impostas por Washington não passaram despercebidos.A coordenadora do LabChina destaca, contudo, que a China nunca foi totalmente dependente das exportações: “Hoje em dia, nenhum país cresce isolado e autóctone, fechado. Os países estão integrados numa economia mundial, mas a China nunca fez das exportações o principal e único motor do seu crescimento econômico”.Mas a guerra comercial e as tensões geopolíticas têm gerado dificuldades para a economia chinesa. “Há muitas causas para as dificuldades que a China já começou a enfrentar e vai continuar enfrentando, e a guerra comercial seguramente é uma delas”, afirma Isabela.Com isso, o país tem intensificado seus esforços em inovação e tecnologia para reduzir a dependência do Ocidente. “O que é absolutamente surpreendente no caso chinês é que é o único país que entrou por baixo nas cadeias globais de valor e subiu”, destaca a especialista.Para além da ascensão econômica, é importante também reconhecer as críticas internacionais ao modelo chinês, especialmente no que se refere aos direitos dos trabalhadores.Kenneth Roth, ex-presidente da Human Rights Watch, ou observatório dos direitos humanos, em inglês, destaca a gravidade da situação trabalhista na China. “O governo sequer finge respeitar os direitos dos trabalhadores. Não há sindicatos independentes, apenas aqueles subordinados ao Partido Comunista, e nenhum direito de negociar coletivamente ou de fazer greve”, afirma Roth.Além disso, ele aponta que “o Estado de vigilância onipresente da China torna difícil e perigoso tentar contornar essas restrições”, resultando em salários artificialmente baixos — que, por sua vez, oferecem uma vantagem competitiva injusta aos fabricantes chineses.Um dos exemplos mais notáveis da cultura trabalhista exaustiva no país é o chamado “modelo 996″, comum em startups e empresas de tecnologia: jornadas das 9h às 21h, seis dias por semana.O esquema foi abertamente defendido por Jack Ma, um dos empresários mais ricos da China e fundador do Grupo Alibaba, que chegou a dizer que trabalhar dessa forma era “uma bênção”. Roth aponta que essa prática contribui para exaustão, problemas de saúde e falta de direitos trabalhistas.O uso de trabalho forçado, especialmente em relação à minoria muçulmana uigur, também é uma questão alarmante. Roth explica que, à medida que o governo chinês libertou alguns uigures dos campos de detenção — onde 1 milhão de pessoas foram forçadas a abandonar sua religião, cultura e idioma —, muitos foram enviados para trabalhar forçadamente, principalmente na região de Xinjiang, mas também em outras partes da China.No ano passado, também surgiram denúncias sobre um outro grupo que trabalha em condições análogas à escravidão na China: os norte-coreanos enviados pelo regime de Pyongyang.Relatos recentes apontam que, em janeiro de 2025, eles teriam se revoltado após descobrir que não receberiam seus salários, pois o dinheiro teria sido desviado pelo governo norte-coreano para financiar a produção de armas.Os protestos teriam ocorrido em diversas fábricas de roupas administradas pela Coreia do Norte no nordeste da China. Devido ao controle total que o Estado norte-coreano exerce sobre seus cidadãos — onde dissidência pública pode resultar em execução —, manifestações desse tipo são praticamente inexistentes.O ex-presidente da HRW também afirma que a China é extremamente sensível às críticas internacionais sobre seu histórico trabalhista. “O governo chinês busca rotineiramente exportar sua censura, retaliando contra governos, empresas ou indivíduos que criticam publicamente sua repressão”, diz. Roth acredita, contudo, que a reação da comunidade internacional pode ser uma alavanca para pressionar Pequim acabar com as práticas abusivas.O governo chinês nega as acusações sobre os uigures e diz que “os campos de detenção são uma ferramenta para combater o extremismo islâmico”. Pequim acusa militantes uigures de planejarem a formação de um Estado independente por meio de “bombardeios, sabotagem e distúrbios cívicos”. A China também nega cometer abusos aos direitos humanos e afirma que suas políticas “são projetadas para alavancar a qualidade de vida dos operários”.