A receita amarga para sufocar o crime organizado no Ceará
Tal primeiro comando, paulista, subdividiu-se em outros comando e cores, e as serpentes chocaram ovos venenosos e a mãe-prisão gerou muitos filhos
Arquivo Vivo|Percival de Souza e Percival de Souza
A metástase PCC, como já previmos aqui, explodiu no Ceará, e pode expandir-se em outros Estados, como uma resposta das organizações criminosas contra a súbita rigidez adotada nos estabelecimentos penitenciários. Não parece ser coisa arquitetada por comando único, mas por uma sinergia que agrega vários grupos. O objetivo, sim, é desafiar o Estado, aterrorizando a população e mostrando que crime organizado não é apenas um poder paralelo, mas o poder de fato.
O tal primeiro comando, paulista, subdividiu-se em outros comando e cores, facções e grupelhos. Não se pode mais atribuir o que está acontecendo no Ceará apenas a reações contra Bolsonaro, Moro ou Marcola, embora tenha acontecido isso nos primeiros momentos de nova gestão. No serpentário criminoso, as serpentes chocaram ovos venenosos e a mãe-prisão gerou muitos filhos.
E agora? No ano passado, dois chefões do PCC, Gegê do Mangue e Paca, foram executados numa manobra cinematográfica executada com helicóptero e rajadas de tiros em Fortaleza, a cidade que torna seu próprio nome sem sentido. A organização, que possui tentáculos interestaduais, foi atingida pelos Judas do crime, personagens traidores que existem por toda parte. O dinheiro fascina e corrompe. Aconteceram retaliações por toda parte, a algumas conhecidas e outras que somente os hospedados no ninho da serpente puderam saber. Todas foram exemplares.
Até aqui, proliferaram acordos nas prisões principais, onde vigora uma lei própria e irreversível: o que concedido (ou comprado) uma vez, não pode mais ser retirado. Drogas, celulares, favores sexuais, troca de mensagens, visitas fora de hora, tolerância com advogados e funcionários inescrupulosos, tudo canalizando para a verdade sinistra: tudo que é proibido existe dentro da cadeia. É assim que se fica em “paz” e não existem rebeliões. Tudo tem preço, às vezes bem alto.
Quando esse cenário ensaiou uma mudança, ainda pálida, as reações começaram: no Ceará, explosivos numa ponte, na frente de um Juizado Criminal, carros particulares, torre de transmissão de energia, apreensão pela polícia de cinco toneladas (!) de explosivos. A bandidagem ligada a facções, ao contrário do governo, não quer ficar separada e, sim, agrupada, porque desse modo as coisas ficam mais fáceis para eles.
A Assembleia Legislativa cearense tomou uma cândida providência: aprovar uma lei que proíbe a existência de tomadas nas celas, onde até aqui presos colocavam tranquilamente carregadores de celulares. Uma lei para proibir administração falida? Ridículo. Grotesco também, por lei, pretender impor a volta de policiais aposentados para serviço ativo. As coisas não funcionam assim, só na caneta, medida apenas bacharelesca e controversa.
Em São Paulo, Marcola intimida com a possibilidade de ser resgatado. No Rio, o carro blindado onde estava a deputada Martha Rocha, ex-chefe da Polícia Civil, foi alvejado a tiros de fuzil. A mãe dela, 88 anos, escapou ilesa. O motorista foi ferido. Há indícios de ataques programados de milicianos a autoridades fluminenses. Assassinato de Marielle Franco? Vala comum do esquecimento. Fuzil? Continua a discussão: quem está com um na mão apenas quer ir à missa, não representaria ameaça para ninguém? Ou é um perigo iminente? A resposta não pode ser dada por quem se considera inteligente ou é considerado imbecil e idiota, como está na moda. Menos.
Aqui estamos. Vamos ver para onde iremos. Para lidar com essa situação, que se arrasta há anos, é preciso saber usar o cérebro muito bem. Já se fez de tudo, até com ”especialistas” que, tendo a oportunidade de colocar a mão na massa, fracassaram. No fizeram na prática o que apregoavam (e continuam apregoando) na teoria. No caso, é requerida a inteligência, o inverso da burrice. A inteligência, em termos profissionais, não é uma palavra mágica, como muito tem sido usada. Não é bola de cristal, não é adivinhação. Já foi ironizada como coisa de araponga, tema de uma novela de TV. Há cursos específicos para isso, nas polícias, nas Forças Armadas. CIA, FBI, Mossad, são exemplos em nível superior de coleta de informações. Na Polícia Militar de São Paulo, quem faz o curso de especialização na área usa no uniforme pequeno símbolo, uma chave. Quer dizer: por meio de uma chave abrem-se as portas de toda informação necessária.
Antigamente, chamava-se a isso de “serviço secreto”, um tipo de Big Brother sobre tudo e todos. Já foi usado politicamente, depois passou a ser Centro de Informações das três Forças, nas quais a Marinha — Cenimar — se destacava, comparada ao Ceiex, do Exército, e o Cisa, da Aeronáutica.
Tais informações são catalogadas e obedecem a níveis variados como secretas, confidenciais ou sigilosas. No caso de uma investigação criminal, é óbvio que não se avisa a quem está sendo investigado. Muito menos se conta para um advogado aquilo que está sendo apurado contra cliente. Seria ingenuidade demais. O cliente, por sua vez, pode mentir para todos (e como mente!), menos para seu advogado. Não estou perguntando se você concorda ou não com esse estilo. Estou informando como as coisas funcionam, quer se goste ou não goste. Uma informação confidencial, por exemplo, pode produz estragos políticos se vier a público, como já vimos no Brasil. Mas é fato que todos, pessoas e grupos, gostam de fazer certas coisas às escondidas, nunca querendo pensar como é o pulo do gato.
Inteligência, portanto, requer infiltração, fontes, disfarces, trânsito em várias áreas, acesso a dados. Não se pode prever o atentado contra Jair Bolsonaro em Juiz de Fora. Claro que não, exatamente por isso é exigida a segurança pessoal. Não se previu o atentado contra John Kennedy, em Dallas, 1963, e nem que Gregório Fortunato, o guarda-costas de Getúlio Vargas, fosse assassinado na prisão antes de ser libertado. Mas o Centro de Informações da Aeronáutica transformou a Base Aérea do Galeão em República, descobrindo que Gregório contratou um pistoleiro para matar o jornalista Carlos Lacerda, errando o alvo e atingindo mortalmente o major Rubens Vaz. Getúlio era todo poderoso, mas não resistiu ao cerco de informações obtidas pela Aeronáutica. Matou-se dentro do Palácio do Catete. Chegamos ao ponto: e as informações necessárias para conter o crime organizado?
Saiba, saibam: inteligência é chegar ao ponto de partida. Trabalhar informe para transformá-lo em informação. É administrar a informação com pessoal treinado e preparado para saber de coisas terríveis. O crime organizado possui cérebros externos, investidores com capital de giro do crime, que retroalimenta uma rede cada vez mais perigosa, inclusive com gente acima de suspeitas, como um membro do PCC em São Paulo que era advogado e presidia, moralmente podre, uma comissão estadual de direitos humanos no Estado. O direito humano é universal, mas não pode ser escudo para assalariados do crime. Ceder é conceder, e Marcola se deu ao luxo de conceder uma "audiência" (!) para representantes do governo paulista, que foram de avião ao presídio de Presidente Wenceslau para conversar sobre um acordo. Negociar é fazer negócio. Negociar com bandido nunca foi bom para a sociedade.
É hora de dizer, com base no meu know-how da vida: precisamos usar a inteligência, não a fantasia na boca de “ólogos”, e extirpar o câncer criminoso do corpo social. Isso exige contra-ataques, agir em vez de ficar em compasso de espera, perceber que “atos preparatórios”, no jargão jurídico, são atos que se consumam em crimes tipificados como qualificados. Estamos perdendo o embate com o crime ousado e cada vez mais violento. Se a cabeça não funciona, o corpo padece, diziam com sabedoria os antigos. O corpo social está padecendo. É passada a hora de usar a inteligência e preparar-se para o grande susto das descobertas, revelações, decepções e a necessidade de fazer sangria em muitas carnes contaminadas.
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