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Especial Cracolândia: operações se multiplicam, não solucionam problema e espalham o ‘fluxo’

Com ação policial em maio, usuários de drogas se dispersaram pelas ruas do centro, aumentando a insegurança 

São Paulo|Letícia Dauer, do R7

Polícia realizou mais de 30 operações na Cracolândia ao longo do ano de 2022
Polícia realizou mais de 30 operações na Cracolândia ao longo do ano de 2022 Polícia realizou mais de 30 operações na Cracolândia ao longo do ano de 2022

A cada dez dias a polícia realizou uma operação na Cracolândia no decorrer deste ano. “O problema foi terceirizado para a Polícia Civil. Temos duas vítimas nesse processo: os usuários de drogas e as pessoas que moram e trabalham no centro”, afirma o promotor de Justiça dos Direitos Humanos Arthur Pinto Filho.

Em 2022, a Polícia Civil, com apoio da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana, realizou 34 ações decorrentes da Operação Caronte, que tem como objetivo o fim do tráfico de drogas e da Cracolândia.

Um levantamento da 1ª Delegacia Seccional do Centro, responsável por conduzir as investigações, mostra que pelo menos 179 pessoas foram presas e 954 usuários foram autuados pelo consumo de crack desde o início das operações, em junho de 2021.

Há mais de 30 anos a Cracolândia resiste no centro de São Paulo, sendo alvo de sucessivas operações policiais em diferentes gestões de governadores e prefeitos. Para especialistas e organizações sociais, essas ações se mostram ineficazes, além serem violentas contra as pessoas em situação de rua.

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“É uma solução que serve apenas como resposta imediata para a opinião pública. Qualquer solução simples para um problema complexo é política de governo”, critica Aluízio Marino, do Labcidade da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo).

Multiplicação do fluxo

Até o mês de maio, o fluxo — termo usado para a concentração de usuários de drogas — estava localizado na praça Princesa Isabel. Com a megaoperação da Polícia Civil, o grupo se espalhou no centro de São Paulo para bairros como República, Santa Cecília, Luz e Campos Elíseos, criando pelo menos 16 mini-Cracolândias.

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Na época, a Prefeitura de São Paulo justificou que seria mais fácil identificar os usuários para acolhimento e tratamento. Comerciantes e moradores da região discordam dessa resolução em razão do aumento da insegurança, do barulho, do acúmulo de lixo e dos conflitos.

Após operação policial, levantamento mapeou 16 mini-Cracolândias no centro de São Paulo
Após operação policial, levantamento mapeou 16 mini-Cracolândias no centro de São Paulo Após operação policial, levantamento mapeou 16 mini-Cracolândias no centro de São Paulo

Para os pesquisadores do Labcidade, esse cenário dificulta a contabilização exata do número de pessoas em situação de rua, impedindo a realização de políticas públicas, principalmente de saúde, adequadas. Segundo a última estimativa, de 1.000 a 2.000 usuários circulam diariamente pelos bairros.

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“A dispersão também rompeu os vínculos dos usuários e desagregou a comunidade. Eles ficam juntos porque se cuidam. O mínimo que eles tinham era uns aos outros”, aponta Roberta Costa, antropóloga e integrante da Craco Resiste, movimento social contra a violência policial na Cracolândia.

Além da separação, essa população vulnerável sofre, segundo a antropóloga, com a violência institucional. As intimidações por parte dos policiais e guardas com uso de cassetetes, spray de pimenta e bombas de gás tornaram-se rotineiras, afetando também a vida dos moradores e comerciantes.

“As pessoas costumam dizer que os usuários são nervosos e muito agressivos, mas eles estão apanhando todos os dias. Não tem como eles não explodirem também, eles são humanos", segundo Roberta Costa, que estuda há dez anos o movimento da Cracolândia.

Falta de estrutura

Além da terceirização do problema da Cracolândia para a Polícia Civil, o promotor Arthur Pinto Filho afirmou ao R7 que não existe uma estrutura física e humana de saúde e assistência social que consiga atender todos os usuários de drogas de forma adequada.

Atualmente, por exemplo, cerca de 40 orientadores sociais — responsáveis por garantir os direitos de pessoas em situação de risco ou vulnerabilidade — atuam na Cracolândia. Como a remuneração é baixa, a rotatividade dessas vagas é grande, impedindo a criação de vínculos e de confiança com os usuários.

Outra problemática elencada pelo MP-SP (Ministério Público de São Paulo) é a condução coercitiva e desumana dos usuários aos hospitais psiquiátricos e centros de acolhimento. “Muitas pessoas eram levadas algemadas”, revelou o promotor. Após o breve período de internação, os pacientes também saem sem perspectiva de moradia e trabalho; por isso acabam retornando à Cracolândia.

Um instrumento controverso que também vai e volta no decorrer das gestões municipais é a internação involuntária de usuários de drogas, que voltou a ser usada na gestão do prefeito Ricardo Nunes. O MP-SP, inclusive, abriu um inquérito civil para apurar a ilegalidade das ações.

Em agosto de 2019, o presidente Jair Bolsonaro sancionou um projeto de lei que alterou a Lei Antidrogas. Segundo a legislação, a internação ocorre sem o consentimento do paciente e com autorização de um familiar ou responsável. O pedido tem que ser feito por escrito e aceito pelo médico psiquiatra, que deve informar o MP no prazo de 72 horas.

Futuro

Questionado sobre as perspectivas para o futuro, o pesquisador Aluízio Marino afirmou que “a análise dos últimos anos não permite ser otimista. Com a pandemia, estamos vivendo uma crise habitacional. Então é difícil pensar em um horizonte positivo. O caminho é a participação popular com as pessoas em situação de rua, moradores da região, comerciantes”.

Para a antropóloga Roberta Costa, a Cracolândia só vai desaparecer quando as questões de moradia, cárcere privado, legalização das drogas, saúde mental e espaços de convívio públicos de lazer forem solucionadas.

Como primeiro passo, o promotor de Justiça dos Direitos Humanos defende a criação de um grupo de trabalho com psiquiatras, o Conselho Regional de Medicina e Psicologia e as lideranças dos usuários, além da contratação de assistência social durante 24 horas.

Outro lado

Em entrevista à Record TV, na quinta-feira (22), o delegado Roberto Monteiro, líder da Operação Caronte, afirmou que a situação mudou completamente na Cracolândia em relação ao ano passado. As incursões no fluxo são realizadas a partir de um trabalho de inteligência e investigação com policiais infiltrados, fazendo imagens de pequenos traficantes em ação.

“Antes tínhamos um gueto na praça Júlio Prestes com várias ruas repletas de barracas, onde havia de 10 a 15 banquinhas com importantes traficantes atuando. Hoje temos só microtraficantes que são presos constantemente”, disse o delegado.

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Monteiro também contou que, atualmente, o crack é vendido em pouca quantidade e em valor alto. “A pedra está de 25 a 40 reais, porque falta droga nessas ruas.”

Enquanto isso, a Prefeitura de São Paulo informou que “oferta por meio de sua rede de equipamentos e serviços o acolhimento e o tratamento a usuários de álcool e outras drogas em situação de vulnerabilidade ou risco social”.

Por meio de nota, a prefeitura também divulgou que, entre janeiro e novembro, 333 pessoas foram encaminhadas para leitos hospitalares, e apenas três foram de modo involuntário ao Hospital Municipal Cantareira. O tempo médio de permanência para desintoxicação nas internações é de dez dias.

Nesse período, foram realizadas 40.971 abordagens, que incluem atendimentos médicos e de enfermagem e encaminhamentos para a rede de saúde, além de 1.534 encaminhamentos para o Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica.

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