‘Há um Rio Grande do Sul até essa enchente e outro depois’, revela Romeu Piccoli um ano após o maior desastre climático da história recente do Brasil
PlayPlus lança nesta quinta (24), o documentário ‘A Reconstrução’, que retrata retomadas emocionantes e recomeços dolorosos de um povo que tenta se reerguer
Entrevista|Juliana Lambert, do R7

Com o olhar sensível, faro investigativo e trajetória premiada, Romeu Piccoli avisa que não é “jornalista de fontes”, mas aquele que vai para dentro dos fatos e chega até o povo. E foi assim que ele mostrou o drama das famílias que tentavam atravessar a América Central para chegar aos Estados Unidos a bordo de um trem — cobertura que rendeu o Prêmio Internacional de Jornalismo Rei da Espanha para a RECORD na categoria telejornalismo.
Ele também fez parte da equipe que lançou mão de um disfarce para conseguir emprego em uma confecção clandestina em São Paulo (SP), e provar que em pleno século 21 ainda há trabalho escravo. Na Floresta Amazônica, compartilhou o drama de crianças e adolescentes que se arriscam em uma das atividades mais perigosas do Brasil: a colheita do açaí.
Há exatamente um ano, Romeu embarcou para Porto Alegre (RS) para cobrir o maior acidente climático da história recente do Brasil. Foram mais de 2 milhões de moradores afetados pelos temporais e 183 mortos.

Depois de passar 15 dias debaixo d’ água e sem a certeza de quando aquela tragédia chegaria ao fim, ele não tem dúvidas de que emocionalmente foi o seu trabalho mais difícil. “Eu já atravessei o deserto mexicano em cima de um trem com imigrantes que queriam chegar aos Estados Unidos, flagrei trabalho escravo no meio da selva, mas pessoalmente, essa cobertura do Rio Grande do Sul me impactou muito”, confidencia Romeu, que foi o primeiro jornalista de São Paulo a chegar no Sul.
Alguns meses depois, ele retornou ao estado para registrar retomadas emocionantes e recomeços dolorosos de um povo que precisou resistir. As histórias são relatadas no documentário A Reconstrução, que será lançado nesta quinta (24) no PlayPlus.
Ao R7 Entrevista, Romeu conta detalhes da intensa cobertura e comenta a sensação de voltar ao Rio Grande do Sul meses após a tragédia, e encontrar um povo empenhado em se reerguer. Confira a seguir:
R7 Entrevista: Antes de falar sobre o documentário A Reconstrução, que retrata como está o Rio Grande do Sul após o maior acidente climático recente do Brasil, gostaria que você relembrasse um pouco a cobertura, que completa um ano.
Romeu Piccoli — Cheguei um dia antes de alagar Porto Alegre e o meu foco era mais a região metropolitana. Foi tudo muito intenso, pois era o pior momento da capital, o Jairo [Bastos], que é o nosso repórter do Rio Grande do Sul, estava preso em outra região [por conta das enchentes] e por isso fui o primeiro jornalista de uma equipe de São Paulo a chegar no alagamento de Porto Alegre. Fiquei 15 dias e voltei após alguns meses para fazer o documentário [A Reconstrução, do PlayPlus].
Falando desse primeiro momento, eu já fiz muita coisa na vida, [cobri] trabalho escravo no meio da selva, atravessei o deserto mexicano em cima de um trem com imigrantes que queriam chegar aos Estados Unidos, mas, pessoalmente, essa cobertura do Rio Grande do Sul me impactou muito e tinha como componente a incerteza, pois você não sabia quando aquela tragédia iria acabar.
A chuva até cessava um dia, só que o rio não parava de encher, porque em outra região do estado chovia muito e a água corria para a região metropolitana e para o [rio] Guaíba. Era uma incerteza e você via isso no olhar das pessoas, eles não estavam acostumados com aquela situação. Todos estavam muito comovidos, mesmo aqueles que não tinham sido atingidos diretamente.

R7 Entrevista: Em pouco tempo a enchente atingiu o hotel e o carro que a equipe da RECORD havia alugado…
Romeu Piccoli — Quando cheguei, o aeroporto [Salgado Filho] ainda não tinha fechado, só fechou dois dias depois. Eu fiquei em um hotel no centro de Porto Alegre e no dia seguinte já estava enchendo, as autoridades falavam para as pessoas deixarem a região. Voltamos de uma reportagem e o centro estava embaixo d’água.
Eu fiz a entrada ao vivo para o jornal já em frente ao hotel e com a água no joelho. Dormimos e quando acordei no dia seguinte tinha meio metro de água no saguão do hotel. Saímos com o carro anfíbio do Exército e naquele momento as ruas viraram rios, foi um cenário de guerra mesmo. Isso é clichê ao falar de catástrofe, mas realmente era. O Exército estava ali, a Marinha e todas as forças de segurança trabalhavam para resgatar os desabrigados.
Naquele momento as ruas viraram rios, foi um cenário de guerra mesmo. Isso é clichê ao falar de catástrofe, mas realmente era. O Exército estava ali, a Marinha e todas as forças de segurança trabalhavam para resgatar os desabrigados
R7 Entrevista: Foram 15 dias com entradas ao vivo e reportagens diárias para a RECORD.
Romeu Piccoli — Esses 15 dias foram muito intensos, de cobertura diária para o jornal, todo dia eu fazia uma matéria. Eu tenho a característica de ir para dentro da coisa, não sou muito de bastidores, não sou o cara das fontes, vou lá e entrevisto o povo. Eu fui para dentro da água todos os dias e fiquei muito tocado. Teve um dia que até chorei tomando banho.

R7 Entrevista: E como foi voltar após alguns meses para acompanhar a reconstrução do estado e produzir o documentário para o PlayPlus?
Romeu Piccoli — Foi um impacto muito grande, porque eu conheci aquela região em um barco, de cima de um carro anfíbio, um blindado do Exército. Eu naveguei pelas ruas de Porto Alegre e ao voltar de carro passei por aquelas mesmas ruas, aquilo também me emocionou. Já com outro cenário, as pessoas afetadas empenhadas em se reerguer. Mas, ao conversar com quem não foi afetado diretamente e tocar no assunto daquele período, a pessoa começava a chorar. E era alguém que não havia perdido nada, que morava em outro bairro, que foi para a praia, porque muita gente foi para o litoral nesse período, mas mesmo assim ela começava a chorar. A impressão que eu tenho é que o Rio Grande do Sul viveu um luto, porque esse processo de luto não é de um dia, dois ou três. Eu acredito que aquilo que eles viveram antes da enchente foi uma vida e agora estão vivendo outra. Se a gente pensar, o número de mortes não foi tão grande perto da calamidade, mas muita coisa morreu ali, não foram só as vidas perdidas.
Se a gente pensar, o número de mortes não foi tão grande perto da calamidade, mas muita coisa morreu ali, não foram só as vidas perdidas
R7 Entrevista: Um dos casos que mais comoveu o Brasil foi o de Agnes, a bebê que caiu do barco enquanto era resgatada junto à mãe, a irmã gêmea e outros irmãos, na cidade de Canoas (RS). Como foi esse encontro com a mãe da criança meses depois?
Romeu Piccoli — Eu não tinha entrevistado a mãe na época [do acidente climático], mas conversei para o documentário. Nós estivemos na festa de aniversário da irmã gêmea que não morreu. Essa mãe também está tentando se reconstruir, disse que tem que viver para os filhos que estão vivos. Esse é o processo de luto clássico, mas acho que todo mundo está vivendo um luto.
De uma forma geral, o Rio Grande do Sul está se reerguendo, eles são de uma resiliência, de uma força absurda. Essa mulher, por exemplo, que perdeu uma filha, eu também tenho uma filha e não consigo imaginar. Mas ela está reerguendo, fez uma festa de aniversário para a filha que está viva.
De uma forma geral, o Rio Grande do Sul está se reerguendo, eles são de uma resiliência, de uma força absurda
Você também reencontrou um comerciante que havia perdido uma loja grande de acessórios para celular...
Romeu Piccoli — A loja dele ficou tomada pela água e meses depois ele estava se reerguendo. Eu fui três vezes lá, uma para fazer a cobertura in loco do que estava acontecendo e mais duas vezes para prodizir o documentário. Na primeira vez, ele se emocionou muito, porque a gente falou do que ele tinha perdido e do que tinha vivido. Não são só questões materiais, o que percebo quando converso com as pessoas, não é o apego material. É sobre o que eles viveram, é o trauma de ver a cidade debaixo d’ água.
R7 Entrevista: Foi uma das coberturas mais difíceis para você?
Romeu Piccoli — Emocionalmente sim. Difícil sempre é, mas emocionalmente me impactou. A gente vai, faz, mas o que contei, dessa vez eu chorei tomando banho por tudo o que estava vivendo.

R7 Entrevista: O que o público pode esperar do documentário do PlayPlus?
Romeu Piccoli — O foco é mostrar como essas pessoas estão se reconstruindo, porque não é apenas uma reconstrução física, é maior do que isso, é uma reconstrução psicológica e da vida. Eu acho que realmente o Rio Grande do Sul vive um luto, como você vive a perda de alguém. Há um Rio Grande do Sul até essa enchente e outro depois. Em alguns lugares parece que está tudo normal, como se nada tivesse acontecido, mas na hora que você conversa com as pessoas, aquilo está vivo. Uma coisa que senti também, o gaúcho tem essa coisa, de valorizar o que é da terra e vejo que existe um movimento de consumir o que é deles. Eu lembro que fui jantar lá um dia e eles falavam vamos pegar esse vinho, foi produzido aqui. Esse espírito de solidariedade, de querer ajudar e fazer, eu percebi muito naqueles primeiros 15 dias.
R7 Entrevista: Você também deve ter muitas histórias de solidariedade para contar.
Romeu Piccoli — Quando o nosso carro foi tomado pela água, precisamos usar os serviços de um taxista para chegar aos pontos e pegar as embarcações para navegar, porque mais a gente navegava do que trafegava lá. Como o aplicativo de GPS não funcionava, recorremos ao motorista local e fiz uma proposta para ele ficar com a gente por uns dias, seria um dinheiro bom, ainda mais naquela situação. Ele disse que apesar de ser uma ótima oportunidade, estava trabalhando só naquele dia para ter dinheiro para colocar combustível e transportar de graça as pessoas resgatadas. Ou seja, ele só estava trabalhando para ter dinheiro para levar os conterrâneos afetados para a casa de parentes e abrigos. E foram muitos casos assim, todo mundo queria ajudar.
Lembro também que estava lá trabalhando à noite, um frio danado, e sempre chegava alguém com café, chocolate quente, um sanduíche. Eles passavam e davam para qualquer pessoa que estivesse trabalhando. Às vezes, acabava de fazer uma entrada ao vivo, e chegava alguém com café quente, aquilo era um abraço que te davam. A solidariedade foi algo que me chamou a atenção.

R7 Entrevista: Essa cobertura também te ajudou a se reconstruir de alguma forma?
Romeu Piccoli — Quando você passa por uma situação dessas, volta modificado, eu voltei, não há dúvidas. Às vezes, fico muito tempo sem ter uma cobertura muito visceral e penso que estou muito consumista… É preciso ter esse choque de realidade e humanidade, de valorização do que realmente é importante. Voltei repensando e dando valor a coisas mais simples, embora isso aconteça comigo com frequência. Sempre fui muito preocupado com as mudanças climáticas e agora ainda mais. Se alguém continuar negando, tem que ser internado. Não tem qualquer pessoa de boa fé que consiga sustentar que o clima não está mudando. Eu tenho uma filha de 7 anos e penso muito nisso. O mundo está mudando rápido, isso é muito claro. Eu espero que isso conscientize também quem tem poder para tentar conter essas mudanças.
Quando você passa por uma situação dessas, volta modificado, eu voltei, não há dúvidas
R7 Entrevista: Imagino que além da reconstrução também tenha ficado um trauma na população e agora eles precisem aprender a conviver com isso…
Romeu Piccoli — Você ainda sente que, ao mesmo tempo em que querem ficar [na região], eles também pensam se vai acontecer novamente. Eles têm amor à terra, o gaúcho tem essa coisa muita aflorada, eles não querem sair, mas muitos pensam que talvez tenham que sair, pois pode acontecer de novo.
R7 Entrevista: Para finalizar, qual é a mensagem da série documental do PlayPlus?
Romeu Piccoli — Espero que as pessoas percebam que essa reconstrução não é só material, e tirem como exemplo. Que fiquem tocadas com isso, vejam a importância de se reconstruir e não se entregar, que é possível se reerguer e vale como metáfora para qualquer coisa na vida. Lá foi uma tragédia, as pessoas viveram isso, não sei se todas ainda estão de luto, mas muita gente vai viver no luto por muito tempo… Mas vai passar, as pessoas não se entregaram. Essa lição está ali, eles viveram uma tragédia e estão se reconstruindo materialmente e emocionalmente. Não seremos os mesmos, mas continuaremos existindo. Resistimos. O documentário não deixa a gente esquecer de que as coisas ruins acontecem, mas elas passam. Talvez se transformem.