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Irmãs afegãs morrem em onda de suicídios

Principal hospital de Mazar-e-Sharif recebe todos os dias três a quatro pacientes que tentaram se matar

Internacional|

Mohammed Gul, pai de Fareba e Nabila, chora em sua casa no Afeganistão
Mohammed Gul, pai de Fareba e Nabila, chora em sua casa no Afeganistão Mohammed Gul, pai de Fareba e Nabila, chora em sua casa no Afeganistão (BRYAN DENTON/NYT)

À primeira vista, as irmãs Gul pareciam ter tudo: eram jovens, bonitas, educadas e ricas, testando os limites das tradições conservadoras afegãs com jeans justos, maquiagem e celulares.

Porém, Nabila Gul, 17 anos, brilhante e impetuosa colegial, forçou a barra. Ela se apaixonou.

A irmã mais velha, Fareba, 25 anos, alarmada com a vergonha potencial e as consequências da busca de Nabila por um rapaz fora dos canais familiares, tentou intervir. A discussão entre as duas naquele dia de novembro terminou em dor: caixões lado a lado, as duas mortas dentro de um intervalo de poucas horas após tomarem raticida roubado do armário de cereais do pai.

Entrevistas com familiares, governo e representantes do hospital revelaram um equívoco mal calculado. Sob pressão da irmã mais velha para parar de se comunicar com o rapaz, Nabila tentou ingerir veneno não para se matar, mas para dar um susto na família. Contudo, ela errou na dose. Vencida pela culpa e pesar, Fareba a acompanhou tirando a própria vida na entrada do santuário mais sagrado da cidade.

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A morte das irmãs destruiu a família e tocou num ponto arrepiante para os outros moradores de Mazar-e-Sharif, cidade cada vez mais marcada pelo desespero de suas moças. Para muitos, as mortes passaram a simbolizar uma crise maior: a intensificação de uma onda de tentativas de suicídio.

Embora o governo afirme não coletar dados sobre esses casos, o principal hospital da cidade sustenta não conseguir dar conta do recado, com três a quatro pacientes sendo internadas todos os dias, contra uma ou duas por mês dez anos atrás.

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O número de tentativas cresceu com tanta velocidade que o investigador-chefe da polícia, coronel Salahudin Sultan, disse que não acompanha mais os casos.

"Não temos nem tempo nem recursos para investigá-los", explicou. "Dificilmente descobriríamos alguma coisa."

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Quanto ao por que e por que aqui, parecem existir tantas teorias quanto o número de casos. A maioria das explicações se concentra no status de Mazar como um centro intercultural próspero, relativamente mais liberal e sujeito a influências europeias. Embora as garotas afegãs daqui sejam expostas regularmente às normais sociais ocidentais por meio de séries de televisão e pela internet, o fato é que elas vivem na sociedade conservadora e dominada pelos homens do Afeganistão. O confronto é cruel, e pode ser de cortar o coração.

"A maioria das meninas não morre, mas todas tomam veneno ou pelo menos ameaçam se matar", disse o Dr. Khowaja Noor Mohammad, diretor de medicina interna do hospital regional de Mazar-e-Sharif. "É seu pedido de socorro."

O médico que tentou salvar as irmãs Gul, Dr. Khaled, produziu um registro de pacientes dos últimos dois meses. Enquanto examinava a lista, falou os nomes de várias moças que tentaram se suicidar: Fatima, Mariam, Zulfiya, Zar Gul, Basbibi.

"Devemos ter provavelmente 200 casos aqui de tentativa de suicídio", afirmou Khaled, que só tem um nome, balançando a lista no ar. "Nas últimas 12 horas, houve três casos."

Talvez nenhum outro exemplo seja mais emblemático ou discutido do que a morte das irmãs Gul.

As duas são de uma família progressista e culta. Mohammed Gul, o pai, é promotor. Nabila estava prestes a se formar no ensino médio e planejava fazer faculdade na cidade. Fareba já cursava faculdade e esperava seguir os passos do pai na profissão jurídica. As jovens eram determinadamente modernas e não pareceriam deslocadas em muitas cidades ocidentais.

Nabila era impetuosa, com temperamento vivaz e uma forte noção de si mesma. Ela costumava questionar o que Fareba lhe dizia, rejeitando o respeito mantido em relação aos mais velhos na sociedade afegã. Fareba, mulher compassiva que costumava chorar após pequenas brigas, contou a uma amiga que não se sentia respeitada por Nabila.

Sua última briga, na manhã de 26 de novembro, envolveu um rapaz pelo qual Nabila afirmava estava apaixonada. Fareba considerava a relação inadequada, pedindo para a irmã desistir dela. Nabila recusou e as duas começaram a gritar. A mãe escutou a briga e correu para separá-las, estapeando Nabila duas vezes no rosto por retrucar à irmã mais velha, revelam conhecidos da família. A mais jovem se debulhou em lágrimas.

Uma hora mais tarde, a mãe de Nabila a encontrou no chão do quarto, com a boca espumando.

No hospital, os médicos tentaram desesperadamente tirar o raticida de seu organismo enquanto familiares cercavam o leito, implorando para Nabila se recuperar.

De acordo com um médico presente à cena, a mãe voltou um olhar furioso para Fareba e disse: "Se Nabila morrer, a culpa será sua". Mohammed Gul ficou sentado em silêncio, segurando a mão da filha. Ela recuperava a consciência e voltava a perdê-la. A moça afirmou que não desejava tomar tanto veneno e que estava arrependida.

Às 14h30, Nabila morreu. Ao voltar do hospital para casa, o pai teve um ataque cardíaco e foi internado.

Na casa, as pessoas começaram a se reunir. O filho mais velho da família, Abdul Wahid, recebia as condolências na sala verde-claro da casa. Porém, ele estava preocupado com Fareba, a irmã de quem era mais próximo, que não respondia seus telefonemas nem aos torpedos.

Às 16h, seu telefone tocou. Era Fareba. Com voz rouca e lenta, ela contou estar no santuário Hazrat Ali. Impedido de sair por causa dos visitantes, Abdul Wahid pediu ao tio, Malim Faiz Mohammad, ir buscá-la.

Ao chegar à mesquita, Mohammad vislumbrou uma multidão perto da entrada do templo. Ele viu a sobrinha caída no mármore frio no centro das pessoas. Filetes de espuma escorriam pelo canto de sua boca.

Às pressas, ele a levou ao hospital. Os médicos instalaram Fareba num quarto próximo ao do pai, que ainda se recuperava. Um ignorava a presença do outro.

Ninguém mais conhecia o paradeiro de Fareba. Segundo o tio, com a família preocupada preparando o corpo de Nabila para o enterro, ele decidiu manter segredo, sem desejar transtornar uma família já fragilizada.

Os médicos cuidaram da irmã mais velha durante mais de uma hora. O tio ficou em silêncio enquanto executavam o mesmo procedimento que não conseguiu salvar a irmã horas antes. Às 17h30, Fareba foi declarada morta.

"Morrer assim simplesmente não faz sentido", afirmou Mohammad durante entrevista. "Queria que tivessem morrido num acidente."

Ele levou o corpo de Fareba de volta para casa, mas o escondeu num quarto separado onde ninguém o veria. O tio não conseguia ter coragem para contar a má notícia aos outros.

A verdade surgiu no dia seguinte.

De madrugada, Mohammed Gul acordou no hospital. Ele ficou sentado durante algum tempo na sala banhada de sol, reunindo os pertences, ainda sem conseguir assimilar a morte de Nabila. O pai pensou que precisava falar com Fareba sobre o acontecido. De volta ao lar, ele foi levado ao quintal, onde os caixões estavam lado a lado.

"Por que tem dois caixões?", ele perguntou ao irmão. "Para quem é o segundo?".

As irmãs estão enterradas juntas num cemitério comum a pouca distância da casa da família, com as sepulturas marcadas com duas estacas de madeira e um monte de pedras.

Mohammed Gul raramente come e sofre com surtos contínuos de enfermidade. A esposa, devastada, raramente deixa sua fria casa de concreto.

À noite, marido e mulher dormem no quarto das filhas; ele na cama de Fareba, ela na de Nabila. Eles deram os pertences das filhas, seguindo o costume, à exceção de um par de vestidos. Nos dias ruins, os pais esfregam o rosto nos vestidos.

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