A Maratona de Boston, segundo os bostonianos
Evento esportivo é um dos mais tradicionais do mundo e tornava a cidade americana um lugar especial, depois do atentado a data não será a mesma
Internacional|Do R7
Fui criado em Boston no fim dos anos 50 e no início dos 60 e, como muitas pessoas da época, sofria de um complexo de inferioridade cívica. Sabíamos que nossa cidade natal só era importante nas manchetes de jornais velhos e que o verdadeiro centro do universo era Nova York.
Contudo, nos sentíamos satisfeitos por saber que tínhamos duas coisas que os nova-iorquinos não tinham: o Dia dos Patriotas e uma maratona – ou melhor, "A" maratona, porque, a não ser pela corrida de Fidípides, quem é que já ouviu falar de outra? Antes que as maratonas fossem padronizadas como as de hoje, em que uma é basicamente igual à outra, nossa corrida, iniciada em 1897, parecia exclusivamente bostoniana. A origem era clássica, ela era um pouco estranha e, em nossa cidade louca por esportes, onde as torcidas eram quase formas de religião, a maratona era mais uma ocasião para reunir toda a congregação.
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Para crianças em idade escolar, o Dia dos Patriotas era um presente inesperado – um feriado de primavera que acontecia perto da Páscoa, quando as férias já haviam acabado e que não exigia nenhuma obrigação em particular. Ninguém precisava ir à igreja, nem homenagear presidentes mortos, nem se preocupar com a posse de fogos de artifício ilegais. Se você tivesse sorte de conseguir ingressos, dava pra assistir os Red Sox jogando no horário incomum de 11h da manhã e, quando o jogo acabasse, podia ir até a Praça Kenmore para ver os maratonistas. Ou então, se vivesse no mesmo bairro que eu, em Brighton, perto da base de Heartbreak Hill onde a maratona fazia uma curva fechada à esquerda até a Rua Beacon, poderia ver os adultos correndo vestidos com o que pareciam ser suas roupas de baixo.
Naquela época, a maioria das pessoas não corria por diversão, nem para fazer exercícios ou qualquer outra razão que o valha, de forma que havia algo agradavelmente excêntrico em relação à maratona – um festival anual de primavera em que se comemorava a suspensão da rotina e não a extravagância. As estudantes de Wellesley, com suas meias três quartos e bermudas, saíam correndo do alojamento para parabenizar os maratonistas, assim como os meninos de pulôver do Boston College (que ainda só aceita homens), poucos quilômetros à frente. Famílias como a minha se reuniam em pequenos grupos, assistiam e aplaudiam por algum tempo e depois voltavam para casa quando a diversão perdia a graça. Ninguém ligava muito para quem estava na frente porque, a não ser por Johnny Kelley, ninguém sabia quem eram os maratonistas.
Johnny Kelley havia nascido em Boston (em West Medford) e correu a maratona quase todos os anos até a idade de 84 anos. Ele venceu em 1935 e 1945 e terminou entre os cinco primeiros mais de 12 vezes. Mas, na época em que eu assistia, ele já estava no grupo do meio, sempre com um sorriso tímido. Correndo com as pernas levemente tortas, ele era um personagem amável e reconhecido por todos. Kelley fascinava meu pai que, como muitos de sua geração, acreditava que tinha feito todo o exercício de que precisava durante a guerra e queria passar só oito horas no emprego e então ficar jogando minigolfe no porão de casa.
Ah, se soubéssemos que Kelley era a face do futuro, das gerações que levariam os exercícios físicos a sério e correriam longas distâncias como se não fosse nada! Ele viveu o bastante para ver a maratona se transformando no evento mundialmente famoso de hoje em dia, com dezenas de milhares de competidores e centenas de milhares de pessoas se reunindo nas ruas para assistir ao evento. Nos tempos de glória de Kelley, o vencedor não ganhava nem um centavo. O prêmio era uma medalha e uma coroa de louros, como as que eram dadas na Grécia antiga, além de um prato de carne ensopada. Isso também parecia exclusivamente bostoniano: um pequeno toque de elegância discreta, seguido por um lembrete de que não devíamos deixar a vitória subir à cabeça.
Após os atentados da semana passada, diversas pessoas, incluindo o presidente Barack Obama, afirmaram que Boston é um local forte e resistente. Esse poderia ser um clichê sem sentido (quando foi a última vez que você ouviu alguém importante dizer que determinada cidade é uma terra de molengas?), se não fosse pelo fato de Boston ser realmente um lugar forte, ainda que nem sempre pelas razões mais nobres. É uma força nascida em parte dessa sensibilidade pragmática de quem come ensopado de carne, mas também de uma história de bairrismo, ressentimento de classe e preconceito racial e étnico – do costume de cuidar dos seus, porque não dá para confiar em mais ninguém.
A maratona era um antídoto contra esse tipo de isolamento. Ela ligava a cidade, seus bairros e subúrbios, como contas em um colar. Se pararmos para pensar, o trajeto é uma viagem que conta o passado de Boston e seu processo de expansão, começando por Hopkinton, uma área que já foi praticamente rural, e passando pelos subúrbios de Wellesley e Newton, 36 km a leste, onde faz uma curva à direita perto de onde eu vivia, passando por casas geminadas e alguns prédios de apartamento através de Brookline, outra cidade rica, voltando até Back Bay, que na minha época não era um ligar tão pretensioso. A multidão que recebia os maratonistas na linha de chegada não vinha de todo o planeta, como acontece atualmente, mas de toda a cidade, reunida em uma comunhão anual.
Mesmo quando a maratona se tornou essa ocasião tão celebrada, um evento mais internacional que bostoniano, ela ainda manteve parte de sua excentricidade original. Ainda era parte de um festival, que era tanto um rito de primavera quanto um evento esportivo. Ainda era gratuita para os espectadores, que podiam ir aonde bem quisessem sem precisarem de ingressos. Ainda era aberta a todos – ou a qualquer um que conseguisse se qualificar – e o trajeto ainda passava em frente às casas das pessoas.
Depois do ataque cruel e sem sentido de segunda-feira (15), os bostonianos ainda dizem que a maratona pode continuar a existir e sem dúvida continuará, mas jamais será a mesma. Não haverá mais o mesmo senso de liberdade e leveza, a lembrança de bostonianos puritanos vestidos só de cueca e correndo em frente dos vizinhos, que os aplaudiam porque era primavera e todos se sentiam bem. De pé na multidão, podemos comemorar com quem está ao nosso lado, mas também vamos dar uma olhadinha para saber quem é essa pessoa e o que ela está pensando, e saberemos que ela estará pensando o mesmo em relação a nós.
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