Logo R7.com
Logo do PlayPlus
R7 Brasília

Emergências do SUS recebem, em média, 22 vítimas de trânsito por hora desde 2019 no Brasil

Gastos com vítimas de trânsito chegam a R$ 1,2 bilhão entre 2019 e 2023; especialistas comentam impactos econômicos e na vida da população

Brasília|Edis Henrique Peres, do R7, em Brasília


Média de 22 pessoas são atendidas nas emergências por horas Andre Borges/Agência Brasília

As emergências dos hospitais do SUS (Sistema Único de Saúde) receberam uma média de 22 vítimas de sinistros de trânsito no Brasil nos últimos quatro anos. De 2019 a 2023, foram 792.203 atendimentos nas emergências, resultando em um gasto de R$ 1,2 bilhão e o total de 438 mil diárias de UTI (Unidades de Terapia Intensiva).

Os dados são do levantamento exclusivo feito pelo R7 via Lei de Acesso à Informação, com o Ministério da Saúde. Os impactos dos sinistros e a ocupação de leitos impedem a destinação de recursos e atendimento para outras unidades hospitalares.

Veja Mais

Considerando o ano de 2019, a demanda por UTIs cresceu 22,35% até o ano passado. Nesse cenário, o Ministério da Saúde reconhece as lesões de trânsito como “um grave problema de saúde pública global, gerando elevada demanda por atendimentos e internações, especialmente em UTIs”.


“As ações do setor de saúde devem ser complementadas pela atuação de órgãos de trânsito, educação, planejamento urbano, entre outros. Para reduzir os impactos à vida e ao SUS. O Ministério da Saúde apoia ações intersetoriais entre governo e sociedade civil que priorizem a segurança viária, o transporte e trânsito seguros, a sinalização e a proteção das rodovias”, informou.

A pasta também pontuou que as iniciativas “envolvem a gestão eficiente de recursos, campanhas de conscientização, fortalecimento das UPAs 24 horas e dos hospitais de pequeno porte, além da inovação na gestão com tecnologias”.


“No âmbito da saúde, os desafios, que já vêm sendo trabalhados pelo Ministério da Saúde, juntamente com estados e municípios, envolvem a capacitação dos serviços da Rede de Atenção à Saúde, que inclui atenção básica e hospitalar, entre outros serviços, e a notificação adequada de acidentes, assegurando dados confiáveis para ações de promoção da saúde e prevenção, com medidas coordenadas para resultados efetivos”, disse.

Tragédia epidemiológica

O R7 buscou especialistas em trânsito para comentar o que pode ser feito para a melhoria do cenário no país. Diretor da Abramet (Associação Brasileira de Medicina do Tráfego), José Montal considera os números uma “tragédia epidemiológica”.


“Desde 2004, a própria ONU (Organização das Nações Unidas) e a OMS (Organização Mundial de Saúde) definiram o sinistro como sendo uma doença deveras importante e elegeu os sinistros de trânsito como problema de saúde pública em 2004. São 20 anos da constatação da importância do sinistro de trânsito, que nada tem de acidental, pois tem causas que podem ser prevenidas”, explicou.

O especialista cita estimativa da OMS, de que 3% a 5% do PIB de cada país chega a ser usado para custear gastos com sinistros de trânsito.

“Se considerarmos o cenário mundial, cerca de 92% das mortes por sinistros de trânsito acontecem em países pobres, menos capacitados. Temos então fatores sociais, econômicos e educacionais. Por isso, é preciso ter pleno conhecimento, desde a formação do condutor, dos cuidados e dos riscos do trânsito”, analisou.

O maior percentual de mortes atinge homens de 18 a 30 anos, principalmente no “modal motocicleta”, cita Montal. A Abramet chegou a tentar emplacar um curso de atendimento pré-hospitalar para os motociclistas.

“O objetivo era que, em São Paulo, o atendimento fosse feito por outros motociclistas até a entrada no hospital, uma estratégia para mudar comportamentos e impedir lesões que produzem sequelas para a vida inteira”, observou.

Velocidade é vilã

O especialista aponta que os países que tiveram sucesso na redução dos casos, adotaram sistemas mais seguros.

“Não existe justificativa moral para uma morte no trânsito. E o principal vilão é a velocidade. Se não souber gerir a velocidade [das vias] com competência, uma pessoa pode ser condenada à morte. Existe, inclusive, a curva de Ashton, que explica a relação do aumento da velocidade com a mortalidade dos sinistros de trânsito”, exemplificou.

A tal curva funciona assim: quando você está a 30km/h, quase todos os atropelados sobrevivem. Mas quando ultrapassamos 60km/h, quase todos morrem.

“Ou seja, à medida que a velocidade aumenta é exponencial a proporção de aumento da gravidade e chance de morte. Por isso, o gestor público, ao falar de velocidade, precisa avaliar esses aspectos”, defendeu.

Montal elogia o CTB (Código Brasileiro de Trânsito) e diz considerá-lo um dos textos mais aperfeiçoados do mundo.

“Mas entre o texto e a aplicação temos uma grande distância que torna esse código quase uma letra morta [lei sem aplicação efetiva]. A lei precisa não só ser bem comunicada, para que todos saibam, mas também se caso transgredida, ser imediatamente corrigida com medidas pedagógicas. Hoje, a multa por uma infração chega com meses de defasagem”, lamentou.

Perdas econômicas e produtivas

Zuleide Feitosa, professora da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora de Transporte e Trânsito, aponta que o Brasil ocupa o terceiro lugar em taxa de mortalidade no trânsito.

“Uma pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostra que o Brasil aumentou sua taxa de mortalidade em 2,3%. Em média 93 pessoas morrem ao dia”, alertou.

Zuleide acrescentou ainda que a perda onera setores econômicos do país, além do gasto dos recursos públicos.

“Temos uma perda na pirâmide produtiva de jovens adultos, que está sendo mais sacrificada, pois são os que mais sofrem com esses sinistros. Isso gera uma perda indireta e gigantesca na produtividade econômica do Brasil. Diretamente, às famílias perdem seus entes queridos e também uma fonte de renda, podendo o sustento ficar comprometido”, explicou.

Para a professora, é necessário “exigir dos governantes campanhas educativas e treinar os novos condutores, principalmente os mais jovens, quanto ao risco dos sinistros”.

“Educar melhor a população, de modo geral, e enfatizar nas campanhas de trânsito o risco de se violar um semáforo vermelho, ou o risco do aumento da velocidade ou distração ao volante, é fundamental. E lembrar que muitas vezes você não tira apenas a sua vida, mas a de outras pessoas”, avaliou.

Aumento das mortes

Professor do Departamento de Engenharia de Transportes da UFC (Universidade Federal do Ceará), Ademar Gondim analisa que a segurança dos veículos, com exceção das motos, aumentou ao longo dos anos.

“Hoje, os veículos são mais seguros. As vias também evoluíram, existe uma sinalização mais eficaz e um pavimento mais seguro. Mas o problema aí temos um terceiro elemento que são as pessoas, porque o acidente em si é um fato não previsto, mas e a imprudência?”, observou.

Para Gondim, é necessário separar o que é acidental, negligência ou imprudência dos motoristas.

“A ‘imperícia’ é quando ele faz algo que não sabe, como pegar um veículo que não sabe dirigir. A ‘imprudência’ é quando a pessoa assume determinado risco, como trafegar em uma via de 80km/h a 100km/h. Enquanto a ‘negligência’ ocorre quando a pessoa se esquece dos cuidados no trânsito, como calibrar o pneu, conferir os freios e outras medidas”, detalhou.

O professor aponta que a solução é educação e disciplina.

“O trânsito é uma atividade que exige disciplina, exige sinalização bem feita, e obediência a sinalização. Para mim, antes de receber a CNH, um motorista deveria ficar 24h na emergência de um hospital, para ver a situação das pessoas que chegam, e entender a gravidade e os riscos de se infringir alguma regra de trânsito”, defendeu.

Mudanças na gestão do trânsito

A reportagem buscou o secretário Nacional de Trânsito, Adrualdo Catão, para entender o que o Ministério dos Transportes vem realizando para auxiliar na redução de mortes e acidentes de trânsito no país.

Em entrevista exclusiva ao R7, Catão apontou a importância de se mudar a concepção dos motoristas e também dos gestores municipais. Lidando com a questão da velocidade, por exemplo, a campanha do próximo ano, que começa a ser divulgada agora em dezembro, tem como o tema a mensagem: “Desacelere. Seu bem maior é a vida”.

O secretário afirma que o trabalho é feito no sentido de mudar a concepção da sociedade. Por exemplo, a palavra ‘acidente’ não é usada mais como forma de incentivar a forma como se enxerga esse problema.

“A gente quer mudar a forma de enxergar esses problemas, principalmente não vê-los como uma irresponsabilidade individual. Por isso, no lugar de chamar de ‘acidente’, que parece algo aleatório, começamos a chamar de ‘sinistro’, para avaliar o problema como algo que tem multicausas”, alertou.

O secretário explica que há tendências mundiais nos dados de mortes no trânsito. “Países muito ricos têm geralmente baixos índices de acidentes, enquanto países muito pobres também, já que é pouca a motorização. Ou seja, os mais afetados são os países de renda média, porque quando um país começa a crescer, a população recorre inicialmente à motocicleta. Ou seja, o fator socioeconômico é fundamental nesse aspecto”, observou.

Catão explica que o Brasil conta com um Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans) com expectativa de reduzir pela metade o número de mortes no trânsito no país até 2030.

“O plano é uma resolução do Contran (Conselho Nacional de Trânsito), feito para dez anos [2019-2030], que coincide com a década da ONU. No documento, tem responsabilidade e indicações de todos os órgãos do Sistema Nacional de Trânsito”, explicou.

O plano, no entanto, precisa da adesão dos estados e municípios.

“O Pnatrans reúne o que especialistas no mundo todo sabem que dá certo. E você percebe claramente uma relação entre Trânsito, fatores econômicos e sinistros. Quem recorre a motos, são justamente a população mais periférica, que mora longe do serviço e não pode pegar o engarrafamento, ou que optam pelas motos porque a cidade não oferece um transporte público de qualidade”, salientou.

Falta infraestrutura

O secretário alertou que muitas vezes a infraestrutura da cidade não se preocupa, por exemplo, com os pedestres ou ciclistas. “São cidades que não tem calçadas, que não tem ciclovias. Se for idoso e pessoa com deficiência, ele sofre mais”.

Para o especialista, a educação sozinha não consegue solucionar os problemas da letalidade no trânsito. “Isso é um mito. A educação é importante, mas sozinha não resolve isso”, definiu.

“O que resolve é o ambiente. Hoje, o fator de risco fundamental, é a velocidade. Por isso estamos atacando a velocidade no ano que vem. Todas as campanhas do ano que vem estão relacionadas com a questão da velocidade, para chamar a atenção de todo mundo que participa da gestão das cidades”, contou.

Catão pontuou, por exemplo, que ao definir a velocidade da via, o gestor municipal deve pensar: “60km/h, mata quantos por cento a mais que 50km/h? Se eu atropelar alguém a 60km/h, o risco da vítima morrer é quantas vezes maior? Essa conta quem faz o sistema precisa saber”.

O especialista alertou ainda que é preciso pensar no conjunto da via para estimular a redução da velocidade. “Os gestores precisam usar moderação de velocidade também. Temos, por exemplo, o Guia de Medidas de Moderação de Tráfego, onde a gente ensina os prefeitos onde colocar uma faixa de pedestres, que tipo de sinalização colocar”, explica.

Catão lista diversas medidas, como ações que impeçam veículos estacionados impedindo a visibilidade do motorista na faixa de pedestre, e redução da largura das vias para diminuição da velocidade, por exemplo.

“Esse Guia ensina os gestores a usar esses mecanismos. Você coloca uma faixa onde as pessoas usam, de fato, e que vai atender a demanda da população. O gestor tem que guiar o caminho do cidadão da forma mais fácil. Outras medidas é colocar canteiros em pontos estratégicos, porque naturalmente o motorista reduz a velocidade. Se você está vindo em uma via e tem um estreitamento da faixa lá na frente, por exemplo, você também reduz. Ou seja, são várias estratégias e por isso precisamos pensar o trânsito como um sistema”, defendeu. O secretário também comentou sobre a expectativa de criar um Guia de Trânsito só para tratamento de vias próximo a escolas.

“Estamos tentando puxar os outros órgãos, os municípios e a União para pensar no trânsito como sistema. Agora, por exemplo, toda a obra de infraestrutura realiza estudos para avaliar se é possível tirar a rodovia do centro da cidade. Então a gente está construindo muito contorno [de cidades], são obras mais caras, mas reduzem o alto número de sinistros, porque eles acontecem dentro das cidades”, observou.

Desafios

Sobre os gastos com saúde, o especialista analisou que nem sempre o gestor consegue perceber o ganho que ele obtém com a redução dos acidentes. “É preciso pensar em estratégias que deixem mais transparente para o gestor o tanto que ele economiza, para ele perceber o impacto que isso tem no orçamento. Além de, claro, reforçar a importância de impedir a perda de vidas das pessoas. Mas essa questão do trânsito é uma questão cultural. Tivemos, por exemplo, a campanha eleitoral de prefeitos e vereadores, e não encontrei candidatos comentando sobre questões de trânsito”, lamentou.

Para Catão, o caminho é aumentar o engajamento, conscientizar as pessoas da importância do tema e forçar uma mudança democraticamente. “Psicologicamente, a gente tende a não prestar atenção nessas mortes fracionadas. Mas todo dia temos pessoas morrendo no trânsito. É urgente adotarmos mudanças”, finalizou.

Últimas


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com oAviso de Privacidade.